sexta-feira, 9 de junho de 2023

PROPOSTA PARA INCLUSÃO DOS PEIXES NA LEGISLAÇÃO REFERENTE AO ABATE HUMANITÁRIO DE ANIMAIS DE PRODUÇÃO

Até o momento não há nenhum respaldo ou suporte na legislação brasileira que ampare o abate humanitário em peixes, que é a cadeia produtiva que mais cresce

 

I - Sobre o mérito 

A senciência refere-se à capacidade de sentir, entender ou perceber algo por meio dos sentidos1, sendo um pré-requisito para a discussão da ciência do bem-estar animal. Isso significa que os seres sencientes não apenas detectam, observam ou reagem automaticamente às coisas ao seu redor, mas que também podem senti-las. Do ponto de vista evolutivo, a capacidade de perceber impressões ou sentir sensações auxilia na sobrevivência das espécies e, portanto, não é surpreendente que ela tenha evoluído nos seres humanos e em outros animais, incluindo os peixes2.

 

Embora a trajetória evolutiva e de desenvolvimento cerebral dos peixes seja diferente da de outros vertebrados, é evidente que existem muitas estruturas análogas que desempenham funções semelhantes às nossas nesses animais3. Um conjunto de evidências anatômicas, fisiológicas, comportamentais, evolutivas e farmacológicas sugere que os peixes são capazes de sentir dor, medo e outros sentimentos de maneira similar aos demais vertebrados, e que a sua percepção e as habilidades cognitivas muitas vezes correspondem, ou até mesmo excedem, a de outros vertebrados³4. Na maioria das vezes, seus sentidos primários são tão bons quanto os nossos e, em muitos casos, até melhores5 6.

 

Em relação a dor, estudos demonstram que os peixes não apenas possuem todo o aparato anatômico-fisiológico que permite detectar o estímulo nocivo que causa dor, mas também são capazes de transmitir essa informação ao cérebro, onde ela é processada, desencadeando uma resposta complexa. É por isso que quando um peixe sente dor, ele raspa a região do corpo afetada em substratos ou rochas, deixa de se alimentar ou deixa de responder a estímulos que estava acostumado a responder. Tudo isso indica que eles são capazes de sentir e reagir conscientemente a diferentes estímulos potencialmente nocivos do ambiente, favorecendo a sua sobrevivência7 8.

 

Assim, é evidente que, como outros animais de produção, os peixes necessitam de considerações de bem-estar. Entretanto, no momento não há qualquer normativa ou portaria sobre bem-estar de peixes. A Portaria 365/2021 MAPA/SDA, que aprova o regulamento técnico de manejo pré-abate e abate humanitário dos animais considerados de açougue, bem como os métodos de insensibilização autorizados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), não inclui os peixes. Embora a portaria mencione o pescado em suas especificações, posteriormente define pescado como sendo apenas espécies de anfíbios e répteis que são abatidos para o consumo, sendo que tais animais compõem uma fração praticamente insignificante dos animais que, de fato, representam o pescado. Os peixes, juntamente com invertebrados como camarões, lagostas, polvos e lulas, é que compõem o principal recurso pescado ou produzido pelas grandes indústrias.

 

No Brasil, com base nas estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e em dados científicos publicados em 2022, mais de 350 mil toneladas de tilápias são abatidas anualmente. Considerando-se um peso médio de 0,8 Kg por indivíduo, isso implica no abate de mais de 435 milhões de peixes, sem contar ainda outras espécies de produção no Brasil. Desse montante, mais de 80% são abatidos com métodos não considerados humanitários, especialmente a hipotermia em gelo ou água gelada e morte por asfixia9. Visando melhorar esse cenário em termos de bem-estar para os peixes, o MAPA coordenou a produção e o lançamento de manuais sobre boas práticas na criação de peixes de cultivo10, boas práticas no transporte de peixes11 e sobre abate humanitário nesses animais12 que legitimam o tema, mas sem nenhum respaldo legal correspondente pelo poder Executivo. Assim, é necessário que haja suporte nesse sentido para que as considerações de bem-estar propostas nos manuais sejam levadas a sério e incorporadas na prática. Nesse sentido, um primeiro passo fundamental é a inclusão dos peixes na legislação que dá suporte para o abate humanitário de animais de produção.


 

II - Nossas recomendações 

Com base nas informações apresentadas no Manual do MAPA sobre abate humanitário em peixes e no que se conhece a partir da literatura científica da área, nós fazemos as seguintes recomendações no âmbito de respaldar o abate humanitário em peixes pela legislação nacional:

 

 

1. Fase pré-abate: desembarque/descarregamento na chegada ao frigorífico: 

● Deve ser feito com uma canaleta (ponte) ou cano móvel que permita o descarregamento com o volume total de água no transporte.

● Prestar atenção para que nenhum peixe se machuque ou caia dessa canaleta/cano no processo.

● No tanque de recepção/depuração, deve-se avaliar: viabilidade, apetite, quantidade de perda de escamas, padrão de cardume e mortalidade. Lembrar que o estresse do transporte afeta a fisiologia e o apetite por dias após a descarga, o que requer monitoramento constante de ferimentos e doenças.

● Peixes moribundos ou gravemente feridos devem ser removidos e eutanasiados.

 


2. Fase de insensibilização e abate:

 

2.1. Insensibilização por percussão não perfurante:

 

● 15 segundos entre a retirada do peixe da água, sua contenção e sua insensibilização são aceitáveis.

● Administrar um golpe severo com instrumento sólido no crânio do peixe, que deve permanecer inconsciente até a morte.

● O golpe deve ser aplicado acima ou adjacente ao cérebro para causar inconsciência imediata.

● O peixe torna-se rígido, sem movimento opercular, permanecendo com a boca aberta e sem reflexos oculares.

● A percussão pode ser realizada manualmente com pistola pneumática (pistola de dardo cativo), ou de forma mecanizada (equipamentos específicos geralmente alimentados por ar comprimido com pressões entre 90-120 p.s.i.: 6-8 bar).

● Essa técnica tem menor risco, é mais efetiva e mais facilmente realizada em peixes de maior porte como as carpas e o tambaqui.

Importante: deve haver planos de contingência para o caso de haver uma falha do equipamento ou outra ocorrência inesperada que possa resultar em peixes sendo deixados fora da água ou na máquina de insensibilização. Obs: a percussão manual e o corte das brânquias podem ser uma alternativa adequada nesses casos.

 


2.2. Insensibilização por percussão perfurante:

 

● 15 segundos entre a retirada do peixe da água, sua contenção e sua insensibilização são aceitáveis.

● Inserir uma faca afiada, uma chave de fenda afiada ou ferramentas especialmente projetadas com uma haste perfurante (ponta) no cérebro do peixe.

● O impacto da ponta deve produzir inconsciência imediata.

● Por não provocar a morte imediata, deve necessariamente ser seguida de um método de sangria como a decapitação ou o corte de brânquias.

● Para peixes comprimidos lateralmente (ex: tilápia-do-Nilo) usa-se o acesso lateral da cabeça do animal; já para peixes fusiformes (forma de torpedo, ex: carpa-capim) e peixes chatos (ex: bagres brasileiros), usa-se o acesso dorsal da cabeça do peixe.

 


Sinais de insensibilização percussiva eficaz:

 

● Perda de movimento opercular

● Perda de movimento dos olhos

● Abaulamento do anel muscular próximo a nadadeira peitoral

 


2.3. Insensibilização elétrica (eletronarcose):

 

● Pode ser realizada dentro da água ou à seco fora da água, sendo que o tempo de 15 segundos entre a retirada do peixe da água, sua contenção e sua insensibilização é aceitável.

● Consiste na passagem de corrente elétrica através do cérebro com força suficiente para resultar em inconsciência imediata.

● Os peixes devem entrar de cabeça na máquina para assegurar insensibilização.

● Deve durar tempo suficiente para garantir que o animal não recupere a consciência antes da morte por sangria (considerar o tempo para que ocorra a perda suficiente de sangue para causar a morte).

● Para peixes de água doce, normalmente a força requerida é de 3V/cm, enquanto na água do mar a força requerida pode ser três vezes menor. A carga elétrica deve ser liberada por 10-60 s.

● Frequências próximas a 50Hz têm um efeito maior no cérebro e no músculo do peixe, mas que pode causar danos à carcaça. Assim, frequências maiores são recomendadas.

● Deve ser seguida de um método de sangria como a decapitação ou o corte de brânquias.

● A combinação de corrente alternada com corrente contínua tem um efeito positivo em evitar lesões e danos na carne dos peixes.

● Importante: é essencial que os peixes sejam classificados por tamanho antes da insensibilização.

 


Sinais de insensibilização elétrica eficaz:

 

● Perda de movimento opercular

● Perda de movimento dos olhos

● Pequenas contrações musculares

● Perda de posição normal do peixe

 


3. Métodos de abate proibidos:

 

● Hipotermia em gelo ou água gelada

● Asfixia (deixar o peixe fora d’água)

● Sangria sem insensibilização prévia

● Narcose por dióxido de carbono (CO2)

● Evisceração e filetagem sem insensibilização e abate prévios

 


4. Monitoramento para assegurar rápida perda de consciência e morte antes do animal recobrar a consciência:

 

● Os peixes devem ser monitorados regularmente durante toda a operação.

● Se houver dúvida sobre se um peixe está inconsciente ou não, não hesite em repetir a insensibilização ou usar um método alternativo.

● Indicadores comportamentais de inconsciência em peixes para monitoramento:

1. Nado: observar comportamento natatório espontâneo. Ausência de nado indica inconsciência.

2. Equilíbrio na água: inverter o peixe. Incapacidade de retomar à posição normal indica inconsciência.

3. Manejo: pegar e pinçar a nadadeira caudal (dentro ou fora d’água). Ausência de resposta indica inconsciência.

 

4. Picada/beliscada: picar levemente o lábio (fora d’água). Ausência de resposta indica inconsciência.

5. Choque de 6 V: estimular o lábio (fora d’água) com choque de 6 V. Ausência de resposta indica inconsciência.

6. Movimento de virar os olhos: rolar o peixe de um lado para o outro fora d’água e observar o movimento dos olhos. Olhos fixos (acompanhando o movimento da cabeça) indicam inconsciência.

7. Respiração: observar o rítmico batimento opercular dentro d’água. Ausência de movimentos ou movimentos aleatórios do opérculo indicam inconsciência.

 

Observação: atentar para o fato de que algumas espécies não respondem à picada ou ao choque mesmo quando conscientes, e que há espécies com movimentos operculares restritos, de difícil observação.

 



1 SENCIÊNCIA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2020. Disponível em: https:// www.dicio.com.br/trabalho/. Acesso em: 23/05/2021.

2 Broom DM; Molento CFM. Bem-estar animal: conceito e questões relacionadas - Revisão. Arch Vet Sci, 9:1-11. 2004. doi: 10.5380/avs.v9i2.4057.

3 Brown, C. Fish intelligence, sentience and ethics. Anim Cogn 18, 1-17. 2015. doi: 10.1007/s10071-014-0761-0.

4Vila Pouca C, Brown C. Contemporary topics in fish cognition and behaviour. Curr Opin Behav Sci, 16:46-52. 2017. doi:10.1016/j.cobeha.2017.03.002.

5 Bshary R; Wickler W; Fricke H. Fish cognition: a primate’s eye view. Anim Cogn, 5:1-13. 2002. doi: 10.1007/s10071-001-0116-5.

6 Brown C; Laland K; Krause J. Fish cognition and behavior. In: Brown C, Krause J, Laland K (eds) Fish cognition and behaviour. Wiley, Oxford, pp 1-9. 2011.

7 Sneddon, LU. Pain in aquatic animals. J Exp Biol, 218: 967-976. 2015. doi: https://doi.org/10.1242/

8 Pedrazzani, AS et al. Bem-estar de peixes e a questão da senciência. Arch Vet Sci, 11: 60-70. 2007. doi: http://dx.doi.org/10.5380/avs.v12i3.10929.

9 Coelho ME et al. Fish slaughter practices in Brazilian aquaculture and their consequences for animal welfare.Anim Welf, 31: 187-192. 2022. doi: 10.7120/09627286.31.2.003

10 MAPA. Manual de boas práticas na criação de peixes de cultivo. 2022. Acesso: Manual_BP_cultivo_ISBN_ok2.pdf (www.gov.br)

11 MAPA. Manual de boas práticas no transporte de peixes. Acesso: Manual_BPtransporte_ISBN_ok2.pdf (www.gov.br)

12 MAPA. Manual de abate humanitário de peixes. Acesso: Manual_3_Abate_Humanitario_peixes_ISBN.pdf (www.gov.br)


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