Constatação foi feita por pesquisadores daUSP com base na análise do genoma de 118 indivíduos pertencentes a 19 povos da região. Resultados publicados na revista Science Advances podem ajudar na busca por novos tratamentos (foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
A baixa ocorrência de doença de Chagas entre povos indígenas da Amazônia pode ter uma explicação genética. Estudo publicado na revista Science Advances mostra que uma variante genética, presente na imensa maioria dos indivíduos analisados na região, possui importante papel na resistência à infecção pelo parasita transmissor da doença.
“O continente americano foi o último ocupado pelos humanos modernos e tem
uma grande variedade de ambientes. Isso certamente causou uma pressão seletiva
sobre esses povos e induziu adaptações, como essa que estamos vendo agora”,
explica Kelly Nunes,
pesquisadora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).
Nunes divide a primeira autoria do estudo com Cainã Couto Silva,
à época doutorando na mesma instituição e bolsista da FAPESP.
As
conclusões são fruto da análise de 600 mil marcadores do genoma de 118 pessoas
de 19 populações indígenas, que representam a maior parte do território da
Amazônia, tanto no Brasil como nos outros países que abrigam a floresta.
Com auxílio de diferentes técnicas, os pesquisadores encontraram
diferenças em genes envolvidos no metabolismo, no sistema imune e na
resistência à infecção por parasitas como o Trypanosoma cruzi, causador
da doença de Chagas. Uma das variantes mais frequentes, presente no gene
conhecido pela sigla PPP3CA, ocorre em
80% dos indivíduos analisados.
A variante também está presente em outras populações, porém, numa
frequência bem menor: 10% na Europa e 59% na África. Os autores acreditam que
não é uma coincidência, uma vez que o continente africano possui regiões com
condições ambientais similares à da Amazônia e abriga outra espécie do
parasita, o Trypanosoma brucei, causador da
doença do sono. O dado reforça o papel da variante como protetora contra
infecções por protozoários.
“Ao analisarmos as regiões endêmicas da doença na América do Sul, a área
das populações analisadas é justamente onde a doença menos ocorre. Isso poderia
se dar por uma baixa frequência do barbeiro, mas não é o caso, pois é onde ele
tem a maior diversidade”, conta Tábita Hünemeier, professora do
IB-USP que coordenou o estudo.
O trabalho integra o projeto “Diversidade genômica dos nativos americanos”,
apoiado pela FAPESP (leia mais em: revistapesquisa.fapesp.br/ascensao-e-declinio-dos-tupi/ e revistapesquisa.fapesp.br/filhos-de-ypykuera/).
Variante
genética protetora
Para compreender o papel do gene PPP3CA na
interação com o T. cruzi, o grupo converteu
células-tronco pluripotentes, que podem ser transformadas em qualquer outra
célula humana, em células cardíacas. Uma parte teve a expressão do gene PPP3CA reduzida em cerca de 65%. Outra parte
realizava a expressão normal.
Nas células com a expressão reduzida do gene, a capacidade de infecção
dos protozoários foi aproximadamente 25% menor do que naquelas que tinham a
expressão normal do PPP3CA.
“Isso
mostra que o gene, em sua condição mais comum em outras populações, favorece a
replicação do protozoário. Esse fator provavelmente levou os ancestrais dos
indígenas amazônicos que tinham a variante protetora a serem menos infectados e
sobreviverem mais à doença, passando esse traço para seus descendentes”, diz
Nunes.
Cerca de
30% dos pacientes com doença de Chagas desenvolvem a forma crônica da doença,
que leva à insuficiência cardíaca e mesmo à morte. Uma hipótese levantada pelos
autores é que a variante genética encontrada no estudo, além da menor
infectividade, favoreça uma forma mais leve da doença, que não avança para a
fase crônica.
“Não quer
dizer que os povos nativos amazônicos nunca tenham Chagas, mas os que são
infectados poderiam não desenvolver com tanta frequência essa fase crônica e
até mortal”, esclarece Nunes.
Porém, nem
todas as variantes encontradas são necessariamente vantajosas para os indígenas
atuais. As análises também encontraram traços genéticos que favorecem doenças
metabólicas e cardíacas.
Estudos de
populações indígenas brasileiras mostram altos índices de pessoas obesas e de
cardiopatas. Entre os Xavante, por exemplo, 66% sofrem de obesidade, diabetes e
doença arterial coronariana.
Em
populações de caçadores-coletores da Ásia e da África, variantes ligadas ao
coração já foram apontadas como uma adaptação compensatória à baixa estatura
dos indivíduos desses povos, o que pode ser também o caso dos indígenas
analisados no estudo brasileiro.
Foram
encontradas ainda variantes relacionadas ao chamado comportamento de busca por
novidade. No passado, esse traço pode ter sido importante para a exploração de
novos territórios e busca por recursos. Em populações modernas, porém, genes
que favorecem esse comportamento são ligados ao consumo de álcool, cafeína e
nicotina.
Busca
pela cura
Modelagens
matemáticas apontaram para o surgimento da variante protetora contra a doença
de Chagas cerca de 7,5 mil anos atrás, após as populações amazônicas se
separarem das dos Andes.
Algumas evidências corroboram essa data. Uma análise de tecidos
mumificados de 238 indivíduos do sul do Peru e norte do Chile, de um período
que vai de 9 mil a 450 anos atrás, mostra um aumento na taxa de infecção
pelo T. cruzi naquela parte da América do Sul ao longo
do tempo. A região hoje é endêmica da doença.
Outra
evidência são ossos humanos de 7 mil anos encontrados no Brasil que continham
sinais de infecção pelo parasita. Isso mostra que ele já existia por aqui
naquele período, mas mesmo assim a doença não se tornou endêmica na região
estudada.
“O estudo
traz ainda um novo conhecimento sobre a infecção que pode ajudar no
desenvolvimento futuro de novos tratamentos”, afirma Nunes.
A doença
de Chagas é listada entre as 20 moléstias tropicais negligenciadas pela
Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse conjunto de doenças afeta sobretudo
pessoas pobres e não dispõe de tratamentos específicos sem efeitos colaterais
fortes.
Nos últimos anos, o aumento de casos da doença na Europa e nos Estados
Unidos finalmente tem chamado a atenção para a necessidade de se criar novos
medicamentos (leia mais em: agencia.fapesp.br/35136/).
O artigo Indigenous people from Amazon show genetic
signatures of pathogen-driven selection pode ser lido em: www.science.org/doi/10.1126/sciadv.abo0234/.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/indigenas-da-amazonia-possuem-variante-genetica-que-protege-contra-a-doenca-de-chagas/40934/
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