sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Pela primeira vez, média de recursos de campanha foi maior entre as mulheres. Com novas regras de financiamento, homens negros ficaram com menor fatia

Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV comparou a distribuição de recursos nas eleições municipais de 2016 e 2020, considerando raça e gênero. Dados revelam alteração inédita na ‘hierarquia tradicional’ de financiamento, que privilegia homens brancos

 

Nas últimas eleições, pela primeira vez, as mulheres brancas passaram a ser o grupo com maior média de recursos de campanha (saltando de R2.588,58 para R12.716,67). Elas chegaram a desbancar os homens brancos (com, em média, R 10.909,80 por candidato), grupo que historicamente têm acessado fatias do financiamento bem maiores do que seu percentual de candidaturas. 

As mulheres negras - grupo tradicionalmente mais prejudicado na distribuição de recursos eleitorais - atingiram um patamar de proporcionalidade em relação ao seu percentual de candidatas (média de R 10.909,80), enquanto os homens negros ficaram com uma quantidade de recursos inferior ao tamanho de seu grupo na disputa (média de R 8.516,65 por candidatura). 

Os dados são do Núcleo de Justiça Racial e Direito (NJRD) da FGV e mostram que, entre as eleições municipais de 2016 e 2020, o volume de recursos destinados às candidaturas femininas aumentou mais do que o crescimento na quantidade de postulantes desse grupo. Isso fez com que a distribuição fosse alterada de forma inédita, levando em consideração a raça e o gênero dos candidatos. 

O ponto fora da curva vem depois da imposição de cotas de financiamento para candidaturas femininas, em 2018, e negras, em 2020, pelo STF e pelo TSE, respectivamente. No caso do Supremo, foi estabelecido que, no mínimo, 30% do financiamento deve ficar com as mulheres, em cumprimento à lei 9.504/97, que estabelece cotas de candidatura por gênero. Já o TSE votou pela distribuição de recursos na exata proporção das candidaturas de mulheres (negras e brancas) e homens negros.

Os pesquisadores do NJRD chamam atenção ainda para o peso do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC), implementado nas eleições municipais de 2020, responsável por quase 70% do dinheiro colocado nas campanhas. 

De acordo com os autores da nota técnica, divulgada nesta semana pelo grupo de pesquisa, esse conjunto de mudanças restringiu uma lógica que beneficiava os homens brancos. “O fim das doações por empresas e os fundos de financiamento público deram uma importância muito maior aos recursos públicos na disputa. As cotas étnico-raciais e de gênero fizeram com que esses recursos fossem direcionados para os grupos historicamente excluídos do jogo político eleitoral”, avalia Ivan Mardegan, um dos pesquisadores do estudo. 

Luciana Ramos, coordenadora da pesquisa, alerta para o fato de que as regras de financiamento tiveram um impacto importante, mas esse resultado positivo não pode ser superestimado. “Esses resultados são o primeiro passo para a investigação de novas e relevantes perguntas: quando e de que modo os recursos têm sido disponibilizados às candidaturas de mulheres e homens negros, as candidaturas que receberam esses recursos já tem alguma experiência na política ou não?, ressalta.

 

Proporcionalidade e poder

O financiamento das campanhas é considerado proporcional quando um grupo racial e de gênero conta com percentuais de recursos que refletem o seu tamanho no pleito. Assim, se em 2020 as mulheres negras foram 16,15% de todos os candidatos e elas receberam 16,37% do total de recursos, isso significa que ficaram com uma parcela proporcional ao seu tamanho. O cálculo deu origem ao Índice de Proporcionalidade (IP), desenvolvido e aplicado pelos pesquisadores do NJRD. 

Quanto mais próximo de 1 for o IP, mais proporcional foi a distribuição do financiamento. Valores superiores a 1,1 indicam sobrefinanciamento e os inferiores a 0,9 revelam que as candidaturas daquele grupo foram subfinanciadas.

Fonte: elaboração própria com base em dados do TSE


Esse índice muda bastante, se são levados em conta capitais, municípios com mais de 200 mil habitantes e cidades com menos de 10 mil. Entre esses perfis estão municipalidades estratégicas para as legendas por sua importância política e econômica, as capitais; cidades médias que concentram 20% do eleitorado e são palanques de destaque em disputas estaduais e até nacionais; e municípios menos relevantes do ponto de vista eleitoral, por seu potencial limitado em termos numéricos, aqueles com menos de 10 mil habitantes. 

Nas capitais, mesmo em 2020, as candidaturas de homens brancos seguiram sobrefinanciadas (com IP de 1,322). Nos municípios com mais de 200 mil pessoas, a tendência se repete, embora com maior discrição (IP de 1,130, em 2020, e demais grupos raciais e de gênero dentro do patamar de proporcionalidade). As cidades com menos de 10 mil habitantes são aquelas onde o financiamento tende a ser mais proporcional, considerando os diferentes grupos raciais e de gênero.

 






Fonte: elaboração própria com base em dados do TSE


Distribuição de recursos na esquerda, centro e direita

Em relação aos recursos partidários, entre 2016 e 2020, enquanto as mulheres brancas e negras passaram, respectivamente, de uma situação de proporcionalidade e subfinanciamento para uma de sobrefinanciamento (IP 1,405 para brancas e 1,136 para negras); os homens negros foram da proporcionalidade, em 2016, (com IP de 0,950) ao subfinanciamento (IP 0,782), em 2020.


Em todo espectro ideológico, os partidos promoveram alterações significativas na distribuição de recursos de campanha. As legendas do centro foram as que mais mudaram o panorama, dirigindo seus recursos em proporção maior às candidaturas de mulheres brancas e negras. Neste caso, o IP sai de 1,146 e 0,985, respectivamente, em 2016, para 1,219 e 1,648, em 2020. No centro político, os homens brancos passaram de um patamar de proporcionalidade (IP 0,991) para subfinanciamento (IP 0,597) e os negros se mantiveram na zona da proporcionalidade (com IP superior a 0,9).


Em 2016, as legendas de esquerda já apresentavam IP bem próximos à zona de proporcionalidade (homens negros, IP 0,915; mulheres brancas, IP 0,967; e mulheres negras, IP 0,918), com exceção dos homens brancos por pequena margem, com o índice em 1,109. Nos partidos desse flanco do espectro ideológico, em 2020, o IP de mulheres brancas se manteve na zona de proporcionalidade e o de mulheres negras saltou de 0,918 para 1,535. Entre 2016 e 2022, na esquerda, homens negros e brancos entraram na faixa de subfinanciamento.


À direita, embora tenham aumentado significativamente o financiamento de candidaturas de mulheres negras, que saíram de um IP de 0,665, em 2016, para 1,123, em 2020, os partidos preferiram beneficiar mulheres brancas, que, assim, deixaram o patamar de proporcionalidade (IP 0,966) para o de sobrefinanciamento (IP de 1,410).

Esses partidos apresentam a particularidade de - diferente dos de centro e de esquerda - terem mantido os homens brancos na zona de proporcionalidade, penalizando os homens negros, os quais passaram de um IP de 0,880, em 2016, para 0,778, em 2020.

 

A pesquisadora Luciana Ramos adverte que as variações no Índice de Proporcionalidade não podem ser lidas descoladas do contexto. “Não podemos interpretar o sobre financiamento de candidaturas negras do mesmo jeito que o das campanhas de homens brancos, por exemplo. No caso de mulheres, especialmente mulheres negras, é possível enxergar um excesso de recursos como uma forma de compensar essas candidaturas pelo impacto de desigualdades históricas no processo eleitoral, legadas pela discriminação racial e de gênero, enquanto no caso dos homens brancos, sobre financiamento representa a perpetuação das desigualdades estruturais da nossa sociedade”, pondera.

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