Conclusão foi apresentada por um grupo internacional de cientistas em artigo publicado na revista Nature Microbiology. Trabalho alerta sobre a urgência de desenvolver novos fármacos antifúngicos (imagem: Wikimedia Commons)
Todos os dias inalamos milhares de
esporos de fungos potencialmente patogênicos, mas nosso sistema imune
simplesmente os elimina. Em pessoas que estão com a imunidade comprometida –
como transplantados, pacientes em tratamento contra o câncer ou internados em
Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) –, porém, essa interação entre patógeno e
hospedeiro pode ser bastante diferente.
Um exemplo são os casos de infecções
fúngicas que emergiram durante a pandemia de COVID-19 e potencializaram a ação
do SARS-CoV-2 no planeta. Entre os pacientes acometidos com a forma grave da
COVID-19 e simultaneamente infectados pelo fungo Aspergillus fumigatus, a mortalidade chegou a 80%.
Um grupo internacional de
pesquisadores realizou um apanhado da carga dessas coinfecções (coronavírus e
fungos) no mundo durante a crise sanitária. O trabalho foi publicado na Nature Microbiology e traz
alertas para essa e futuras pandemias.
“A questão central dos fungos é que
eles são um problema de saúde pública extremamente negligenciado, com poucas
opções de tratamento. Atualmente, existem mais casos de mortes causadas por
doenças fúngicas do que por malária e tuberculose juntas, por exemplo. Não é
surpreendente, portanto, que as doenças fúngicas tenham tirado vantagem de
tantas pessoas internadas por conta da COVID-19”, afirma Gustavo
Henrique Goldman, professor da Faculdade de Ciências
Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FCFRP-USP) e um
dos coordenadores do estudo, que contou com apoio da FAPESP.
Além da aspergilose, doença causada
por fungos do gênero Aspergillus, dois
outros grupos causam infecções simultâneas à COVID-19. Os Mucorales são responsáveis pela mucormicose,
ocorrida sobretudo na Índia e no Paquistão. As leveduras do gênero Candida, por sua vez, causam a candidíase e estão
presentes em praticamente todo o planeta.
“A aspergilose associada à COVID-19
[condição denominada CAPA, na sigla em inglês] afeta em média 10% dos pacientes
com insuficiência respiratória aguda admitidos em UTI. Portadores dessa
coinfecção têm duas vezes mais chances de um desfecho fatal do que indivíduos apenas
infectados pelo SARS-CoV-2”, informa à Agência FAPESP Martin
Hönigl, professor da Universidade da Califórnia San Diego, em La Jolla, nos
Estados Unidos, e da Universidade de Graz, na Áustria, primeiro autor do
estudo.
Perdas e ganhos
Segundo o
artigo, a aspergilose pode se limitar às vias aéreas superiores por muitos dias
e ser contida com antifúngicos. Uma vez que invade os vasos sanguíneos do
pulmão, porém, a mortalidade é maior do que 80%, mesmo se administrada terapia
antifúngica sistêmica.
Ocorrida quase exclusivamente em
pacientes em UTIs, a candidíase não é mais frequente em pacientes de COVID-19
do que em internados por outras razões. No entanto, os fungos de uma nova
espécie emergente, a Candida auris,
preocupam por serem capazes de colonizar a pele. Parecem também ser os únicos
transmitidos de uma pessoa para outra. Essa espécie é resistente a todos os
antifúngicos conhecidos e, por estar presente em diversos ambientes,
pode facilmente chegar a pacientes com sondas, respiradores e outros
equipamentos invasivos de suporte à vida presentes em hospitais (leia mais em: agencia.fapesp.br/35923/).
Já a mucormicose associada à COVID-19
(CAM, na sigla em inglês) é um problema grave particularmente na Índia, onde o
número de casos dobrou em relação ao período anterior à pandemia. Os relatos
dessa micose ganharam atenção internacional em 2021, quando foram notificados
naquele país mais de 47,5 mil casos apenas entre os meses de maio e agosto. Considerada,
na ocasião, uma epidemia pelo governo indiano, a mucormicose foi erroneamente
chamada de “fungo negro”, por conta do aspecto do tecido humano necrosado
decorrente da doença. Os fungos negros, na verdade, fazem parte de um outro
grupo, relativamente distante dos Mucorales, e
não causam doença em humanos.
Nos
pacientes com COVID-19, a mucormicose frequentemente ocorre na região dos olhos
e nariz, podendo chegar ao cérebro. Nesses casos, a associação das duas doenças
tem mortalidade de 14%. Por causar necrose, em muitos casos a infecção exige
cirurgias que desfiguram os pacientes. Quando sobrevivem, podem perder porções
do rosto, enfrentando diversos problemas para o resto da vida. Quando a
infecção fúngica afeta o pulmão ou se dissemina pelo organismo, a mortalidade
chega a 80%.
“A
prevalência dessa micose na Índia foi de 0,27% em pacientes hospitalizados com
COVID-19, embora ela possa ocorrer frequentemente em pacientes fora do
hospital, como aqueles tratados em casa com doses muito altas de corticosteroides
sistêmicos, facilmente disponíveis para a população daquele país”, conta
Hönigl.
O uso
dessa e de outras classes de medicamentos que diminuem a atividade imune é uma
das causas do aumento das infecções fúngicas no mundo todo. No entanto, a
estratégia se mostrou bem-sucedida durante a pandemia, com os benefícios
superando os riscos. Os pesquisadores alertam, porém, para a importância de
evitar a administração abusiva de fármacos imunossupressores.
Como
alternativa, durante a pandemia, alguns centros com alto risco de aspergilose
implementaram com sucesso a profilaxia antifúngica, com a administração de
medicamentos antes mesmo da infecção por esses agentes. Mas como os fungos
muitas vezes são resistentes à maior parte dos medicamentos disponíveis e não
há estudos clínicos suficientes para avaliar essa estratégia, atualmente ela
não é recomendada.
“Os
imunossupressores são um grande avanço na medicina, possibilitando que muitas
pessoas deixem de morrer de câncer, de doenças autoimunes e mesmo que
recebam órgãos de outras pessoas”, esclarece Goldman.
“Como efeito colateral, seu uso
aumentou em muito a incidência de infecções fúngicas. Com exceção de alguns
fungos termotolerantes como A. fumigatus, os
fungos normalmente não suportam a temperatura corporal dos mamíferos e são
facilmente combatidos pela nossa imunidade inata, mas com a redução da
atividade imune para lidar com doenças altamente inflamatórias, como a
COVID-19, abre-se um flanco para eles atacarem”, diz.
Novos medicamentos
O
aquecimento do planeta também abre caminho para que muitos fungos se adaptem às
temperaturas mais altas, tornando os humanos mais vulneráveis. Por isso, os
especialistas concordam que é urgente o desenvolvimento de novas drogas
antifúngicas. Atualmente, existem apenas quatro classes desses medicamentos, em
comparação às dezenas de diferentes classes apenas de antibacterianos, por
exemplo.
Outro
problema é a dificuldade de diagnóstico, que pode ter custo muito elevado para
os padrões de países de renda baixa e média ou não pode ser feito na
velocidade necessária para apontar o tratamento ideal.
Para
atestar com 100% de certeza a presença de uma aspergilose, por exemplo, é
necessário um exame de broncoscopia – algo considerado muito arriscado durante
a pandemia de COVID-19. Isso porque a quantidade de fluidos humanos expelida
durante o procedimento é mais do que suficiente para transmitir o SARS-CoV-2
para a equipe médica e por isso o teste foi evitado. Tal fato sugere que as
estatísticas sobre essa infecção estejam subestimadas.
“Felizmente,
há boas notícias quanto ao desenvolvimento de medicamentos nessa área, com
várias novas classes de antifúngicos em testes clínicos de fase 2 e 3”, afirma
Hönigl.
Os
pesquisadores temem, porém, que essas novas drogas não cheguem a todos que precisam
e os tratamentos de ponta sigam restritos aos países ricos, continuando a
desigualdade existente na disponibilidade desses medicamentos.
“Nesse
cenário de aquecimento global, poucas drogas disponíveis e doenças que
debilitam e causam epidemias e pandemias, novos surtos de infecções fúngicas
voltarão a acontecer. É preciso ter mais ferramentas para controlá-las e mais
pesquisadores para estudar os diferentes fungos e seus mecanismos de ação”,
conclui Goldman.
O artigo COVID-19-associated fungal infections está
disponível em: www.nature.com/articles/s41564-022-01172-2.
André Julião
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/no-mundo-todo-infeccoes-fungicas-aumentaram-a-mortalidade-de-internados-por-covid-19/39432
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