“Passarei a minha vida e praticarei a minha arte pura e santamente. Em quantas casas entrar, fá-lo-ei só para a utilidade dos doentes, abstendo-me de todo o mal voluntário e de toda voluntária maleficência e de qualquer outra ação corruptora, tanto em relação a mulheres quanto a jovens.” (Juramento de Hipócrates).
O nauseante episódio do anestesista contra uma
paciente vulnerável reuniu a totalidade da reprovação possível entre médicos,
trabalhadores da saúde, operadores do direito e todo o resto da nação. Como
pode um profissional de tão nobre carreira transgredir tão ostensivamente
qualquer tipo de razoabilidade comportamental? Como é possível que tal pessoa
tivesse a confiança dos colegas e da instituição para lá estar trabalhando?
Como professor e cirurgião, também me surpreende
como uma pessoa com tal desvio de caráter conseguiu terminar o seu curso e
receber um diploma de médico. E, mais ainda, completar um curso de residência,
período em que os jovens estão expostos ao escrutínio estreito dos mestres,
sendo exigidos nos limites da resistência pessoal em plantões noturnos, casos
complexos, estudos extensos e, portanto, sendo testados seguidamente em seus
limites emocionais e comportamentais.
É preciso lembrar que toda profissão da saúde tem
essa natureza que franqueia aos médicos acesso à intimidade dos pacientes,
incluídas aí a intimidade física, psicológica, familiar e até financeira. Tal
exposição exige retidão de conduta absoluta por parte do médico e equipe,
respeitando os princípios da bioética, quais sejam a beneficência, a não
maleficência, a autonomia e a justiça. Frutos desses princípios se seguem temas
práticos da formação dos alunos, como o sigilo, a omissão de socorro, o
consentimento, o respeito à terminalidade e muitos outros. Ainda mais
exigente é o respeito à sexualidade. Se o médico não se conduzir em discrição
obstinada nesse assunto, fica inviabilizado o acesso dos pacientes aos
tratamentos, pelo receio de, estando vulneráveis, serem vitimados por aqueles
que seriam seus protetores.
Os mecanismos de controle de tais condutas abusivas
não podem se resumir às delegacias e aos conselhos de medicina com seus
processos formais e muitas vezes sujeitos a recursos que criam obstáculos. A
comunidade profissional em cada ambiente de trabalho tem papel insubstituível e
não pode se eximir de continuamente estar observando o profissional ao seu
lado, no melhor sentido da proteção dos doentes. Tal responsabilidade precisa
ser semeada em cada aluno de graduação durante o curso, esclarecendo-os sobre
as razões históricas e formais do comportamento profissional. Acima de tudo, é
necessário que eles compreendam seu papel social na proteção dos pacientes
vulneráveis, incluindo crianças, idosos, inconscientes e até as pessoas de
educação mais simples.
Desafios modernos para atingir tal formação passam
pelos novos formatos das universidades, com grande número de alunos por turma,
aulas a distância, e avaliações em provas objetivas, com poucas oportunidades
de se acompanhar os alunos de maneira individualizada. A medicina é uma arte
que se aprende de muitas fontes, mas todo aluno deveria ter um tutor ou
equivalente, que lhe inspire e molde sua personalidade no sentido ético
profissional, de modo a preservar o respeito que a profissão merece, sem
banalizações e sem tolerância para as condutas abusivas.
Ermelino
Franco Becker - médico cirurgião oncologista, médico legista no IML de Curitiba
e professor de Bioética e Ética Profissional do curso de Medicina da
Universidade Positivo (UP).
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