Uma das marcas do governo de Donald Trump foi a guerra comercial com a China. Ao prometer em campanha “fazer a América grande de novo” e retomar a geração de empregos, Trump dificultou a entrada de produtos chineses ao sobretaxar alguns dos itens vindos do país asiático. A China “devolveu a gentileza” e, igualmente, sobretaxou alguns produtos estadunidenses. Com a eleição de Joe Biden, a esperança geral era de que a disputa econômica que colocou as maiores economias mundiais em rota de colisão arrefeceria. Não foi o que aconteceu.
Às vésperas de entrarmos em 2022, enquanto muito da
futura pauta internacional segue incerta, percebe-se que algumas desavenças não
dão sinal de diminuir. No início de dezembro, o governo Biden anunciou que não
irá enviar representantes diplomáticos às olimpíadas de inverno, previstas para
ocorrer em Pequim em fevereiro do próximo ano. Esse boicote tem como suposto
motivo o abuso aos Direitos Humanos cometidos pelos chineses. Até agora, o
boicote estadunidense – que não afeta a participação dos atletas, mas sim o
relacionamento diplomático entre as nações – foi seguido por Austrália, Reino Unido
e Canadá. Os chineses, como era de se esperar, declararam que o boicote pode
afetar suas relações com as nações sabotadoras dos jogos de inverno.
As alegações de que a China viola Direitos Humanos
não são novas: desde Mao Zedong (ou Mao Tsé-Tung) pessoas são enviadas a campos
de trabalho forçado – entre 1958 e 1962 estima-se que cerca de 45 milhões delas
morreram nesses locais. Relatos atuais dão conta que esses campos não apenas
seguem existindo, mas também, recebendo milhares de pessoas a cada ano.
Em paralelo, está a situação da minoria “uigur”.
Trata-se de um grupo de pessoas praticantes do islamismo, que habitam
especialmente a Região Noroeste da China (próxima da fronteira com Paquistão e
Afeganistão, cuja capital é Xinjiang), falantes de um idioma muito mais próximo
do turco do que do chinês e de caracteres absolutamente diferentes. Antes de
Mao, os uigures chegaram a declarar independência, mas foram sufocados pelo
regime comunista.
Numa tentativa de “padronizar” sua região noroeste
e suprimir potenciais dissidências, o governo de Pequim enviou para a região
uigur chineses de etnias tradicionais, falantes do mandarim e de hábitos
semelhantes aos da região costeira do país. Desde então, a minoria uigur passou
a sofrer discriminações variadas e – de acordo com poucos relatos que chegam de
lá – ser enviada para campos de trabalhos forçados. Em dezembro de 2020,
surgiram relatos de que os uigures estavam sendo submetidos a jornadas de
trabalho extenuantes em lavouras de algodão, num regime de trabalho forçado
equivalente à escravidão.
Há poucos dias, notícias sobre pessoas torturadas,
espancadas e acorrentadas chegaram até nós. Dissidentes da região de Xinjiang
declararam que a mera instalação do aplicativo WhatsApp é suficiente para a
detenção. Toda essa situação faz com que potências ocidentais acusem a China de
genocídio e crimes contra a humanidade.
Como forma de pressionar o governo de Xi Jinping,
os EUA decidiram não enviar representantes para os jogos de inverno. A Rússia
de Putin – discordante tradicional das posições estadunidenses – confirmou
presença nos jogos. A tentativa chinesa de domínio sobre Hong Kong e suas
incursões em espaço aéreo e marítimo de Taiwan também são motivos alegados para
o boicote de EUA, Canadá, Reino Unido e Austrália. A União Europeia está, até
então, dividida sobre o assunto, e nenhuma posição conjunta foi tomada.
Por mais nobre que seja o apoio à causa uigur, o
amparo a essas pessoas já deveria ter vindo há tempos. A repressão de Pequim a
essa minoria ocorre desde a década de 1990. Os EUA, que agora acusam a China de
violar Direitos Humanos, já patrocinaram ditaduras, depuseram governos e
praticaram atos abomináveis na prisão de Guantánamo em Cuba e de Abu Ghraib no
Iraque. A tortura que os chineses praticam contra os uigures é tão execrável
quanto a tortura institucionalizada pela CIA e chamada de “táticas singulares
de interrogatório”.
No fundo, a pauta dos Direitos Humanos, que deveria
ser mais cara do que qualquer outra, parece estar sendo utilizada
como cortina de fumaça para a manutenção de disputas comerciais. Enquanto
esperamos que 2022 nos livre da pandemia e traga boas novidades, os velhos
confrontos permanecem: guerra comercial, disputas por áreas de influência e os
Direitos Humanos como preocupação apenas quando convém. Muda o calendário,
permanece a hipocrisia.
João
Alfredo Lopes Nyegraym - doutorando em estratégia, professor de Geopolítica e
Negócios Internacionais e coordenador do curso de Comércio Exterior na
Universidade Positivo (UP).
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