– Consegui guardar um tempo, voltei aos livros... Talvez até escreva, assim, por escrever, dizer sobre as coisas, imaginar um pouco...
– Tempo... administrar o
tempo, talvez a única administração que importe. A vida é tempo, não é?
– Logo terei ainda mais
tempo... Fui ver o Jung... Um método perigoso.
– Rsrs... é, há que ter
cuidado com o seu uso, emoções afloram, há quem não saiba o que fazer com o que
emerge.
– Sabes? Fico com Freud,
mas, talvez eu tenha medo de me aprofundar. Sei lá o que encontro em mim.
– Ah!, medo de te encontrar
contigo, então?
– Ah!, pode ser terrível,
né? Vai que me descubro e não me gosto.
– Terrível? E tens que te
gostar em tudo? Ou haveria algo de fato terrível dentro de ti, te assombrando a
consciência, rsrs? Não dou importância às minhas assombrações. Afinal, o que me
poderia infundir terror senão aquilo a que eu mesmo atribua condição
terrificante?
– É, sei, valores... nada é
terrível em si. Bem... só o tempo, que não volta mais. Isso me assusta por
demais.
– O tempo, não se pode
deixá-lo passar, há que se gastá-lo, vivê-lo todo. Detesto o tempo; reverencio
o tempo. Proclamo que o tempo é vida, mas me parto: odeio o tempo; amo a vida.
– Então... O que se faz
dele? Ou não se faz?
– Impossível prolongá-lo,
mas, ainda assim, prolongá-lo, como seja possível. E nada mais se pode.
– Pode-se inventar a vida
eterna. Invejo os crentes. Amém.
– É tragicômico, a gente
acaba. Difícil admitir.
– No sentido de envelhecer?
– Mais. No de fim, mesmo.
Fim. A flor brota, cresce, acaba, some... E nós, igual: acabamos. Isso é mesmo
assombrador. Daí as fantasias de não morrer.
– A gente não quer acabar.
A gente quer ir para o céu.
– Imaginação de recusa: a
mais extraordinária recusa da morte. É primitiva, mas eficaz... sobrevive. E é
quase universal. Cada tribo vai ao seu modo, mas vai para algum céu.
– Eu nem quero céu... o
inferno me parece mais animado... só não queria acabar... O ruim é acabar... e
não vai dar tempo de tudo.
– Eis o fantasma: o tempo,
sempre o tempo. Daí o imperativo das opções. Há que optar; não há, mesmo, tempo
para todas as coisas.
– Catar o interessante...
ter sabedoria para vivê-lo, ter gosto para fruir a vida.
– Mas há sempre a angústia
das escolhas, as dores pelo abandonar o não escolhido. É terrível a sensação do
abandono, a eterna nostalgia culpada do abandonado. Uma saudade do como seria,
se tivesse sido, ou não sido. Vá lá saber! Mas fica a interminável dúvida.
– Feliz com suas escolhas?
Faria algo diferente?
– Não me arrependo, nem
cabe. Gosto de mim. Se não tivesse sido tudo como foi, eu não seria quem sou. A
questão que me ponho é outra: minhas escolhas... elas não se realizaram de
todo, o mundo interferiu, o outro interveio.
– O outro se recusa... Tem
suas próprias escolhas. O mundo não está, mesmo, para nos servir... Não podemos
nos esquecer disso. É muita presunção, querer submeter o mundo aos nossos
interesses.
– É... mundo ingrato, não
cumpre meus caprichos, rsrs.
– Rsrs, mas nisso está toda
a graça: no negociar com o mundo, nos escambos da existência.
– Conformar-se, pois?
– Pode ser, não como
resignação, mas como conciliação. Vivenciando as coisas, ajustando,
regateando... Não é conformismo.
– Sei... adaptar-se à
realidade.
– Isso: harmonizar-se,
fazer a transação necessária, sem concessões de si, mas sem passar por cima dos
fatos do mundo, até porque o mundo não permitiria.
– Bem... aqui... cuidado
nessa negociação. Nós nos enganamos por demais. Para justificar o que queremos,
não nos furtamos em nos acanalhar.
– Ceder além da conta?
Creio que muitas vezes o mundo nem nos pede... cedemos para nossos interesses
menores. Nos convencemos de que era imperioso, mas fazemos de graça, ainda que
constrangidamente, e vamos levando, nos explicando, nos repetindo.
– É... há que solicitar
consciência, estar com atenção.
– Concessão é a palavra.
Cuidado com as concessões. São necessárias, ou a vida seria uma guerra, mas há
limites.
– Entendo... Tenho que
estar no cuidado de mim, no que cedo... Algo ético de mim para comigo mesmo.
– Alguma ética: um
combinado subjetivo que me orienta, que tem que se fazer valer. A gente
percebe... a consciência até que avisa, mas, na hora... um tanto indignos, fraquejamos.
– É que... Talvez... Só se
vê depois, né?
– Sim... e não, não é tão
simples. Nos pomos com olhos de não querer ver.
– Mas, haveria como saber?
Estaríamos, realmente, sempre lúcidos das circunstâncias?
– Por menos, a gente
intui... A gente sabe, mas, tantas vezes, a gente cede, rsrs. E nem me
perguntes: cede a quê? São manobras vis... Cedemos a interesses que não
confessamos nem a nós mesmos.
– Rsrs, dá um desconforto,
né? Por dentro... dá uma agonia. Eu já senti isso, sim. Somos caras-de-pau...
– Ah! Mas não estamos sós.
Somos a humanidade! Somos todos bichos que tropeçamos na ética e caímos... ou
nos jogamos... em tentação.
– É... bichos... bichos
carentes, carentes de afeto, rsrs.
– Rsrs, bichos carentes de
carne.
– Carentes de afeto,
carentes de carne: carência... Podemos chamar de amor?
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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