Dada a impossibilidade de as conquistas
femininas mais recentes conviverem com os preceitos da tradição cristã
dirigidos às esposas, muita gente, mulheres inclusive, reinterpreta a Bíblia,
mitigando, com insinceros dribles semânticos, o sentido das suas palavras.
A palavra do “senhor”,
contudo, é muito eloquente: “Efésios, 5:22: Mulheres, sujeite-se cada uma a seu
marido, como ao Senhor, 23: pois o marido é o cabeça da mulher, como também
Cristo é o cabeça da igreja, que é o seu corpo, do qual ele é o Salvador”.
Mas, procurando-se em
Respostas Bíblicas, vê-se que a ordem não é havida por degradante: “A Bíblia
ordena que a mulher seja submissão ao marido. Essa regra somente se aplica
dentro do casamento. As mulheres não precisam se submeter a todos os homens”.
O patriarcal códice
“sagrado” até seria judicioso com as mulheres: “As mulheres não precisam se
submeter a todos os homens nem estão barradas de serem autoridades. Mas, no
casamento, o marido tem uma posição de liderança” (Respostas Bíblicas).
Quem teria emplacado nas
Escrituras tal preceito? Exatamente aquele que, embora não haja convivido com
Jesus, foi o mais letrado dos seus discípulos: Paulo. Estava em Roma, escrevia
aos efésios, cristãos da antiga cidade grega de Éfeso (na atual Turquia).
Esses insultos contra as
mulheres formaram respeitável tradição por mais de dois milênios, e ainda estão
por aí, com servas voluntárias entregando-se em holocausto a um machismo
codificado e abençoado por sedizentes representantes de uma falodivindade.
Aí, assim, do nada, essa
“mocinha” atropela tão elevado regulamento, fincando uma marca inaugural de
recusa na orientação de “são” Paulo: “Inaiã Dias fazia o juramento quando o
cerimonialista pediu que ela jurasse amor, respeito e submissão ao marido,
Roney Barros.
Ela, então, se negou a
repetir a frase. Quebra de tradição dos votos de obediência já foi feita por
personalidades como Meghan Markle e princesa Diana” (Rodrigo Rodrigues, g1,
25out21), mas, suponho, não se esperaria tal gesto de uma católica brasileira.
Inaiã, contudo, que se
declara não feminista, parece-me estar como está a maioria das mulheres
esclarecidas: não milita, mas se posiciona. Está, pois, alcançada pelas lutas
libertárias do feminismo pós-Segunda Guerra. Edito suas declarações ao g1
(citado):
“Acho que a palavra
submissa, do jeito que eu conheço e está no dicionário, não deveria mais ser
usada nos dias de hoje, quando a mulher trabalha, é independente e busca no
casamento uma parceria. Quando ouvi, tomei um choque e não segurei a
espontaneidade.
Respeito e companheirismo
têm que existir, mas ninguém manda em ninguém. Temos direitos iguais. A gente
sabe que as conquistas femininas estão se consolidando e muitos episódios ruins
contra mulheres acontecem. Quero viver o que toda mulher livre quer”.
Pelo que leio dela sobre
ela mesma, reafirmo que, à sua revelia, o feminismo constitui ideologicamente
suas posições. Sua firmeza de propósitos (construir sua família) conjugada com
sua noção de liberdade (recusa ao voto de submissão) assim o atestam.
Retomando suas palavras:
“Recebeu muitas mensagens de apoio de mulheres através das redes sociais e
achou a solidariedade feminina muito importante”. Essa sororidade advém de um
discurso feminista em circulação que congrega esforços e estabelece conquistas.
Sua pedagógica conclusão:
“Acho que de fato precisa ter respeito, amor e parceria, mas os tempos são
outros e certas palavras estão fora do tempo”. Muito correta: palavras exprimem
ideias. Se uma ideia está extemporânea, as palavras que a exprimem decaem.
Livro: palavras articuladas
expressando ideias. Livros tais quais esse que admoesta esposas à subserviência
(a Bíblia é um palavreado horroroso contra o feminino) estão fora do
tempo. Mulheres, sobretudo, não deveriam levar suas palavras vencidas por aí.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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