Pesquisadores do Laboratório de Parasitologia do Instituto Butantan. Da esquerda para direita: Ana Carolina Tahira, Daisy Woellner Santos e Murilo Sena Amaral (foto: acervo de Murilo Sena Amaral)
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Considerada uma das 17 doenças
tropicais negligenciadas (DTNs) no mundo, a esquistossomose ainda é um
importante problema de saúde pública no Brasil. No entanto, o único medicamento
usado no tratamento foi descoberto há mais de 40 anos. Pesquisa publicada nesta
terça-feira (26/10) na revista Nature Communications mostra
um caminho para o desenvolvimento de novas terapias e até mesmo de uma vacina
contra essa parasitose.
Um grupo que envolve cientistas do
Instituto Butantan, da Universidade de São Paulo (USP) e de instituições
internacionais descobriu o mecanismo pelo qual o macaco rhesus (Macaca mulatta) desenvolve naturalmente uma resposta
imune duradoura contra a esquistossomose. Essa resposta leva à autocura da
doença após um primeiro contato com o parasita Schistosoma
mansoni e, além disso, possibilita que o organismo do animal
reaja com mais rapidez a uma segunda infecção.
O trabalho, que recebeu apoio da
FAPESP, identificou nove genes da via de autofagia do parasita inibidos pela
defesa imune do primata, impedindo que o Schistosoma se
multiplique e contamine o hospedeiro. A autofagia é um processo que dá origem à
degradação de componentes da própria célula utilizando organelas conhecidas
como lisossomos e desempenha função no crescimento celular, diferenciação e
homeostase.
“A via de autofagia, executada por
meio dos lisossomos que fazem a ‘limpeza’ das células, é afetada no parasita
pelos anticorpos do macaco. Essa via é importante para a fisiologia basal
do Schistosoma mansoni e não havia sido demonstrado
seu envolvimento na autocura. Pelo contrário, foi pouco estudada até agora”,
diz Murilo Sena Amaral,
pesquisador do Laboratório de Parasitologia do Instituto Butantan e primeiro
autor do artigo, em entrevista à Agência FAPESP.
O professor da USP e cientista do
Butantan Sergio Verjovski-Almeida,
coordenador do estudo, destaca que a autofagia é uma importante via de
remodelamento dos tecidos do parasita durante seu ciclo de vida, principalmente
quando este passa do estágio de cercárias para a fase adulta.
“Localizamos
mais de cem genes afetados, porém, de vias diferentes. Não quer dizer que não
sejam importantes, mas, quando se encontra nove dos dez genes da mesma via
sendo atingidos, é possível dizer que há uma evidência muito grande de que esse
caminho pode ser a chave para a vacina”, diz.
Outro ponto destacado por
Verjovski-Almeida no trabalho foi o acompanhamento dos macacos entre a cura e o
chamado segundo desafio, realizado 42 semanas após a primeira infecção, que
mostrou a resistência dos primatas à reinfecção, eliminando de forma mais rápida
o Schistosoma mansoni.
Em
humanos, a esquistossomose tem cura quando o diagnóstico é feito na fase
inicial da doença, eliminando o parasita do organismo e evitando o surgimento
de complicações, como o aumento do fígado e do baço, além de anemia. No entanto,
a pessoa não adquire imunidade como o macaco rhesus, podendo ser infectada
novamente.
Estima-se
que essa doença parasitária afete cerca de 200 milhões de pessoas no mundo,
sendo quase metade crianças. Por ano, são aproximadamente 200 mil mortes.
No Brasil,
a esquistossomose está presente em 18 Estados e no Distrito Federal – oito têm
transmissão endêmica (Alagoas, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Sergipe, Espírito Santo e Minas Gerais). De acordo com dados do governo
federal, 1,5 milhão de pessoas vivem em áreas sob o risco de contrair a doença.
Nas regiões Nordeste e Sudeste a ocorrência está diretamente ligada à presença
dos moluscos transmissores.
Entre 2009 e 2019, o país registrou
423.117 casos da doença, segundo o último boletim do
Ministério da Saúde divulgado em março deste ano.
Popularmente conhecida como “barriga
d’água” ou “mal do caramujo”, a doença está diretamente relacionada ao
saneamento precário – a pessoa é infectada quando entra em contato com água
doce onde existam caramujos contaminados pelo Schistosoma.
O ciclo da
transmissão da esquistossomose começa quando um indivíduo já doente elimina ovos
do parasita por meio das fezes e da urina, que vão parar em um ambiente de água
não tratada. Os ovos eclodem e liberam larvas, contaminando assim caramujos de
água doce, chamados de hospedeiros intermediários.
Neles, as
larvas maturam e se multiplicam. Após quatro semanas são eliminadas novamente
na água na forma de cercárias, podendo sobreviver por até 48 horas. Se algum
ser humano andar descalço ou nadar nessa água, as cercárias penetram ativamente
na pele por meio de enzimas que há em suas cabeças.
Após
penetrar no ser humano, elas se desenvolvem e passam ao estágio de
esquistossômulo, capazes de migrar pela corrente sanguínea e linfática e chegar
aos pulmões e coração. Depois, como vermes adultos, se instalam dentro das
veias dos intestinos, onde as fêmeas depositam cerca de 300 ovos por dia. Esses
ovos são levados pela corrente sanguínea para o fígado, causando lesões. Alguns
passam para as fezes.
O
diagnóstico é feito por meio de exames laboratoriais das fezes. Já o tratamento
para os casos simples é em dose única e supervisionada feito por meio de um
medicamento chamado praziquantel, descoberto no início dos anos 1980 e
distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Método
Para fazer a pesquisa, os cientistas
trabalharam com 12 macacos rhesus, que foram infectados com 700 cercárias
de Schistosoma mansoni e acompanhados até 42 semanas
– durante as fases de estabelecimento, maturação e autocura.
Eles foram
então expostos a uma reinfecção por 700 cercárias e monitorados por mais 20
semanas (até 62 semanas após a infecção inicial). O sangue foi coletado para
estimativa da carga de vermes usando o nível de antígeno anódico circulante
(CAA, sigla em inglês), para medida de marcadores inflamatórios e hematologia.
As fezes
também foram analisadas para determinar o número de ovos por grama. Ao final,
foi analisada a carga real do verme em cada primata.
Além disso, os cientistas
fizeram, in vitro, ensaios com plasma contendo anticorpos do
macaco e incubaram com parasitas jovens, detectando a morte deles. “Fizemos os
ensaios para avaliar a expressão gênica e marcas da cromatina, que regulam os
genes expressos a partir do DNA. Com isso, chegamos aos nove genes da via de
autofagia”, explica Amaral.
Ao monitorar os níveis na corrente
sanguínea do antígeno derivado do parasita, a pesquisa mostrou que a partir da
décima semana uma infecção estabelecida com Schistosoma mansoni é
eliminada, gerando resistência à reinfecção.
Os perfis
de anticorpos sugerem que a proteção mediadora de antígenos são os produtos
liberados do desenvolvimento de esquistossômulos. Na cultura, eles são mortos
pela adição do plasma do macaco, coletado a partir da oitava semana após a
infecção, e ainda mais eficientemente com plasma da reinfecção.
Além
disso, os esquistossômulos cultivados perdem marcas de ativação da cromatina e
mostram diminuição da expressão de genes relacionados aos lisossomos envolvidos
na autofagia.
Futuro
Segundo o
professor Verjovski-Almeida, o grupo está agora trabalhando na identificação
dos alvos dos anticorpos. “Olhamos o fenótipo, ou seja, a consequência dos
anticorpos que alteraram a expressão de genes da via. Agora, o próximo passo é
verificar se esses e outros genes são alvos específicos”, conta.
A partir
da identificação desses alvos, a ideia é testá-los como candidatos à vacina.
A pesquisa que resultou no
artigo Rhesus macaques self-curing from a schistosome infection can
display complete immunity to challenge recebeu o apoio da
FAPESP por meio de seis projetos (15/06366-2, 18/15049-9, 18/23693-5, 19/09404-3, 16/10046-6 e 18/18117-5).
O artigo pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41467-021-26497-0.
Luciana Constantino
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/pesquisa-com-macaco-rhesus-abre-caminho-para-vacina-contra-a-esquistossomose/37161/
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