Opinião
A maioria das situações com as quais nos deparamos
na vida tem dois lados. Ou, até, mais de dois. Com a formação de futuros
médicos em meio à pandemia, não é diferente. Não somente no Brasil, mas nos
quatro cantos do mundo, a medicina e os hospitais tiveram que se desdobrar e se
adaptar de inúmeras formas. Embora a pandemia tenha trazido inúmeras tristezas,
no quesito residência médica e ensino, é possível ressaltar peculiaridades do
momento e enxergar o “copo meio cheio”.
Voltando à história, a última crise sanitária que
se assemelha à qual vivemos hoje foi a da gripe espanhola, mais de 100 anos
atrás. Mesmo com a alta demanda e a sobrecarga no sistema de saúde, a covid-19
trouxe a oportunidade de os alunos de medicina aprenderem, fora das salas de
aulas, a lidar com uma emergência sanitária de grandes proporções e com
situações de estresse. Foi possível realizar treinamento de calamidade e
aprofundar o entendimento, na prática, de protocolos de catástrofes
epidemiológicas.
O ganho foi ainda mais especial para a formação de
médicos residentes, que participaram e seguem participando de atividades
práticas dentro de nossos hospitais. A pandemia também acelerou o processo de
transformação digital do ensino, com aulas à distância, acontecendo em qualquer
lugar, chegando mais longe e com trocas antes impensáveis. Além disso, nos
hospitais, aliada à tecnologia, surgiram novas oportunidades de exercer a
assistência com o teleatendimento e a telemedicina.
Outro fator positivo a ser destacado é a
valorização da área de saúde. Dados como os trazidos pelo estudo
"Demografia Médica no Brasil 2020" reforçam esse pensamento: o país
tem hoje mais do que o dobro de médicos que tinha no início do século. Em 2000,
eram 230.110 médicos. Em 2020, 502.475 profissionais. Nesse período, a relação
de médico por mil habitantes também cresceu de forma significativa, passando de
1,41 para 2,4.
Cresceu também o interesse por cursos de graduação
na área da saúde, como Medicina, Enfermagem, Biomedicina, Farmácia e Nutrição.
Segundo uma pesquisa global feita pela Pearson, dos 2 mil pais de adolescentes
e jovens ouvidos, 64% disseram ter percebido maior preferência dos filhos por
assuntos relacionados à ciência depois do surgimento da pandemia. Mas é claro
que, observando o cenário como um todo, também identificamos pontos negativos e
dificuldades enfrentadas na formação dos futuros médicos.
A verdade é que todos os hospitais estão
sobrecarregados e com o atendimento focado nos casos de covid-19. Os hospitais
universitários, que são as unidades voltadas para a aprendizagem, também
enfrentam complicações. Ou seja, os residentes, quando se preparam para
“colocar a mão na massa”, se deparam com pouca variedade de doenças para o
aprendizado, o que proporciona uma formação “menos variada”.
E isso ocorre mesmo nos hospitais que não atendem
casos de covid-19, pois o tratamento de doenças comuns na pandemia ficou
prejudicado. Mesmo os que se tornaram referência em traumas ou outras urgências
e emergências se viram sobrecarregados, precisaram suspender cirurgias,
acompanhamentos e pesquisas nas mais variadas áreas. As mudanças no atendimento
eletivo forçadas pela covid-19, criaram um problema enorme ao agravar filas de
espera por atendimento no sistema de saúde, seja ele público ou particular.
Nesse momento, já enfrentamos uma demanda reprimida criada pela pandemia e
bastante particular: por falta de intervenção precoce ou até mesmo de prevenção
eficiente, o paciente acaba acessando o hospital pela porta do pronto-socorro
por algo que poderia ter sido resolvido no ambulatório.
Além disso, a necessidade de isolamento e de novos
protocolos de atendimento, distanciaram residentes de pacientes – e esse é um
ponto de alerta. É preciso investir em formatos diferentes que possibilitem o
desenvolvimento de habilidades como o cuidado humanizado e a relação empática
entre quem cuida e quem é cuidado, fundamentais a esses profissionais.
De maneira geral, é possível, sim, conseguir
visualizar o famoso "copo meio cheio”. Por mais que tenhamos oportunidades
de reconhecermos lições a serem tiradas do momento em que estamos vivendo, a
verdade é que os “filhos” da pandemia se tornarão médicos diferenciados. Como
já dizia Hipócrates, “a cura está ligada ao tempo e às vezes também às
circunstâncias”, ou seja, tenhamos paciência e sabedoria no futuro para lidar
com os resquícios da pandemia. Ao lado do tempo, com as duas faces da mesma
moeda, teremos que trabalhar para buscar o equilíbrio entre ganhos e perdas - o
que não é impossível.
Juliano Gasparetto - médico
intensivista e diretor-geral do Hospital Universitário Cajuru.
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