Utilizar a internet, especialmente as redes sociais, para documentar aspectos da vida dos filhos, experiências da maternidade ou paternidade é uma prática cada vez mais comum. No entanto, ao exercerem essa liberdade, os pais ou responsáveis legais podem expor indevidamente informações pessoais de menores e colocá-los ainda em situação de vulnerabilidade. Esse tipo de atitude, conhecida como shareting - termo em inglês que combina as palavras "share" e "parenting" -, parte de uma tendência crescente e que pode ter consequências indesejadas. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) alerta para os perigos e impactos de longo prazo desse hábito na vida dos menores.
"A criança e o
adolescente não devem ter vida pública nas redes sociais. Não sabemos quem está
do outro lado da tela. O conteúdo compartilhado publicamente por falta de
critérios de segurança e privacidade pode ser distorcido e adulterado por
predadores em crimes de violência e abusos nas redes internacionais de
pedofilia ou pornografia, por exemplo", explica a coordenadora do Grupo de
Saúde Digital da SBP, dra. Evelyn Eisenstein.
Para atualizar
pediatras, pais e educadores sobre a influência das tecnologias de informação e
comunicação (TICs), redes sociais e internet nas questões de saúde e de
comportamento das crianças e adolescentes, a SBP publicou neste ano o documento
"#Sem Abusos #Mais Saúde" . O guia destaca
importantes recomendações aos médicos sobre como avaliar na história e no exame
durante a consulta casos suspeitos de violência ou abusos, offline ou online;
orientar os pais sobre alternativas seguras, educativas e saudáveis de
atividades para crianças e adolescentes.
Também orienta sobre
como analisar os hábitos da família em relação ao uso das tecnologias;
reconhecer os limites de segurança e privacidade em caso de situações de risco,
bem como a possibilidade da ocorrência de abusos e de repercussões nos
comportamentos e transtornos mentais; dentre outras.
A exposição
exagerada de informações sobre crianças representa uma ameaça à intimidade,
vida privada e direito à imagem, como dispõe o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). Somado a isso, todo conteúdo publicado na internet gera
dados que, no futuro, podem ser desaprovados pelos filhos, por entenderem que
sua vida privada foi exposta indevidamente durante a infância.
Esse é um fenômeno
antigo que teve início com as estrelas mirins em Hollywood, nos anos 1920. Um
dos casos emblemáticos é o do ator Jackie Coogan, que interpretou o garoto no
filme The Kid (1921), dirigido por Charlie Chaplin. Além de astro de cinema, o
menino se tornou uma estrela da publicidade após ser explorado por pelo menos
uma década pelos pais. Ao atingir a maturidade, abriu um processo judicial
contra os familiares em decorrência de toda a exploração da sua imagem, na
época amplamente comercializada.
INFLUENCERS - Na última década,
muitas crianças se tornaram "influencers" com status de
celebridade, por meio de estímulo de familiares e o respaldo de patrocinadores.
"Essas crianças constroem uma vida falsa, de imagens e não uma vida de
experiências reais. E os pais estão colaborando para a construção de uma
personalidade moldada para agradar a imagem que fazem da pessoa, ou seja, de um
falso self. A criança começa a passar por essa situação desde pequena.
Muitas vezes, por trás desse perfil falso pode existir um grande vazio. A
exploração dessas crianças por parte dos pais é uma forma de abuso
infantil", apontou o coordenador do Grupo de Trabalho de Saúde Mental, dr.
Roberto Santoro.
Segundo dr. Santoro,
a exploração dos filhos engloba múltiplos aspectos como o interesse econômico e
o narcisismo patológico. "Existe o ganho financeiro, que é evidente, o de
ganhar dinheiro em cima da exploração dos filhos. Mas existe também uma questão
de patologia do narcisismo. Isso significa que os pais realizam seus sonhos
frustrados de sucesso, de projeção e de fama por meio dos filhos", frisou.
RISCOS - Os interesses
envolvendo os dados das crianças são os mais variados e podem ser utilizados
para diferentes finalidades, desde o roubo de identidade, cyberbullying, uso
indevido de imagens e vídeos por pedófilos, fins comerciais a outras ameaças à
segurança. Dessa forma, a privacidade online é uma garantia de que as futuras
gerações possam entrar na sua maturidade livres para construir por elas mesmas
suas identidades digitais.
"Isso é
mandatório. A SBP sempre procura destacar a importância da mediação parental em
acessos a conteúdos nas redes sociais para tentar reduzir problemas
relacionados à segurança e à saúde das crianças e adolescentes", disse
dra. Evelyn Eisenstein.
No Brasil ainda não
existem medidas legislativas que regulem a privacidade das crianças pelos
provedores de internet. Logo, a publicação de uma foto aparentemente simples
pode ter diversas interpretações e prejuízos, mesmo anos após a postagem.
"Temos vários
projetos de lei barrados por indústrias de entretenimento, mídias e provedores
que lucram em demasia com esse tipo de compartilhamento", comentou dra.
Evelyn. Segundo a pediatra, não há na legislação brasileira uma lei como a
Children's Online Privacy Protection Act (Coppa), instituída nos Estados
Unidos, em 1998, para a proteção de dados e regulação de exposição das crianças
menores de 13 anos na internet.
Para tentar
minimizar os riscos decorrentes da exposição exagerada de informações sobre as
crianças na web, em agosto deste ano a Google anunciou que lançará um serviço
que permite remoção de imagens pessoais de adolescentes menores de 18 anos em
seus resultados de pesquisa. Entretanto, as imagens não serão retiradas da
internet, mas apenas das buscas do Google Imagens.
PRECAUÇÕES - Com o
compartilhamento de imagens e vídeos sendo um hábito relativamente novo, as
repercussões na vida das crianças ainda não são conhecidas, e esta é a parte
mais preocupante da exposição excessiva. Uma coisa é certa: os pais que optam
por não compartilhar conteúdo de seus filhos na internet preservam também a
saúde mental futura dos menores.
"Não são apenas
os pais que devem ser mais cuidadosos, mas também familiares e cuidadores. Eles
precisam estar cientes das possíveis consequências indesejadas para a saúde das
crianças. Não é inofensivo compartilhar conteúdo online", disse dra.
Evelyn.
Os pais que desejam
compartilhar fotos e vídeos de seus filhos online podem tomar medidas
protetivas para garantir que o conteúdo não seja usado para fins maliciosos.
Por exemplo, é possível limitar o público de postagens para que apenas aqueles
em quem você confia que possam ver o conteúdo.
Possíveis
consequências do compartilhamento:
- Perda de
privacidade
- Problemas de saúde
mental (ansiedade, depressão)
- Transtornos
alimentares (anorexia, bulimia)
- Bullying e
cyberbullying
- Possibilidade de
roubo e fraude de identidade
- Riscos das imagens
e vídeos serem mal utilizados e alterados por pedófilos
O que nunca deve ser
compartilhado:
- Dados de
localização
- Nome completo da
criança
- Imagens de filhos
não totalmente vestidos
- Data de nascimento
da criança
- Fotos e vídeos ou
detalhes sobre outras crianças
- Informações sobre
a escola que frequenta ou algo que indiretamente possa denunciar a criança,
como a imagem dela com uniforme escolar
Nenhum comentário:
Postar um comentário