Interpretação
abrangente da lei já reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça
Uma das maiores dificuldades dos credores numa
execução judicial, é obter êxito na busca por bens como alternativas que visem
a adimplência de seu crédito.
Mesmo hoje, com diversas ferramentas cada vez mais
tecnológicas e, portanto, com meios mais eficientes disponíveis para os
credores buscarem bens dos devedores, como é o exemplo do Sisbajud, que agora
tem a possibilidade de estender a busca por até 30 dias, o índice de execuções
frustradas ainda é muito significativo e acaba por fazer muitos credores
amargurarem grandes prejuízos oriundos de obrigações e contratos não cumpridos.
Por outro lado, ainda que se tenha aprimorado os
sistemas de busca de bens, existem no nosso ordenamento jurídico bens que são
impenhoráveis aos olhos da Lei, como, por exemplo, àqueles dispostos no artigo
833 do Código de Processo Civil (CPC), de modo que não seriam alternativas a
serem utilizadas para adimplir determinado crédito e, por conta disso, muitas
vezes a obrigação judicial acaba não sendo satisfeita.
Neste cenário, compete aos credores utilizar a
criatividade e o bom senso para mitigar a regra da impenhorabilidade, e assim
conseguir alcançar a tão almejada satisfação do crédito.
Seguindo nessa estratégia, muitos advogados têm
pleiteado a penhora de parte do salário do devedor e obtido êxito frente aos
Tribunais, ainda que, à luz do inciso IV, do artigo 833 do CPC este bem seja
considerado impenhorável. Desse modo, questiona-se como esses advogados têm
tornado este pleito viável?
É simples. Uma vez que eventual penhora não
comprometa a subsistência do devedor, é possível e até mesmo razoável, a
constrição parcial daquele provento, a fim de que seja destinada para o
pagamento de determinado crédito.
Isso porque, ainda que a lei vede a penhora deste
tipo de objeto, impedir a constrição do salário do devedor em razão da proteção
à sua subsistência, por outro lado, pode também ferir a dignidade do credor, e
é por isso que é preciso ponderar ambos os valores na busca pelo equilíbrio e
pela efetividade do cumprimento de uma ordem judicial.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já teve a
oportunidade de se manifestar sobre o tema. Ao enfrentar o caso, no julgamento
do REsp 1.326.394/SP, em 12/03/2013, a Ministra Nancy Andrighi observou a
necessidade de se fazer uma “interpretação teleológica para harmonizar a regra
geral”. Ela ponderou que a regra da impenhorabilidade visa garantir ao devedor
um mínimo para sua subsistência. Todavia, trata-se, também, de “limitação aos
meios executivos, que garantem a efetividade da tutela jurisdicional”.
Percebe-se, pois, o bom senso sendo usado no julgamento
em comento, além de ter dado ampla interpretação à Lei. Verifica-se que
requerer a penhora dos rendimentos exige ponderação de quem pleiteia, visto que
se deve observar se aquele percentual perseguido irá comprometer o sustento do
executado. Não se pode objetivar, com a penhora do salário, a miserabilidade do
devedor, e sim encontrar nela um meio de satisfazer seu crédito sem que isso
comprometa valores personalíssimos.
Alguns anos depois, novamente a questão chegou a
Corte Superior, que mais uma vez firmou entendimento pela possibilidade de
penhora do salário do executado. Ao enfrentar o caso, em 27/05/2014, o Ministro
Sidney Beneti entendeu pela possibilidade da penhora, uma vez que se verificou
o esvaziamento da conta bancária do executado com vistas a limitar os meios
executórios, bem como se ponderou a profissão do devedor que, médico, poderia
ter um percentual de seus rendimentos bloqueados, sem que isso prejudicasse a
sua subsistência nem a de sua família, de modo que entendeu que este caso concreto
se enquadra na exceção à regra da impenhorabilidade.
Vejam que, para confirmar a penhora, o Ministro
também fez uso do bom senso e acabou por mitigar a regra da impenhorabilidade
do salário, de modo que, analisando o conjunto dos autos e ponderando as
peculiaridades do caso, deu uma interpretação mais abrangente à Lei e decidiu
pela penhora parcial do salário do devedor. A profissão do executado foi fator
importante na decisão.
Desde então, esse entendimento vem sendo repetido
naquela Corte. Contudo, ainda se percebe certa resistência de muitos juízes de
primeira instância em conceder a medida e se aterem então à interpretação
literal e restritiva da Lei, razão pela qual se faz necessário recorrer à
instância superior para o credor fazer valer seu direito, no uso desta
alternativa para dar efetividade à tutela judicial e, portanto, a satisfação
daquele crédito que se persegue.
No entanto, em um movimento contrário ao que se
vinha observando e representando um importante precedente, no último dia 31 de
maio, o Tribunal de Justiça São Paulo, em uma decisão nos autos do agravo de
instrumento 2053722-80.2021.8.26.0000, determinou a penhora de 15% do salário
do executado. No caso em análise, a relatora Carmen Lucia da Silva, da 25ª
Câmara daquela Corte, observou a possibilidade de concessão da penhora de parte
do salário do devedor, reconhecendo a mitigação da regra de impenhorabilidade e
ponderando valores de ambos os lados.
A Magistrada observou, de forma assertiva, que o
que se busca é “harmonizar duas vertentes do princípio da dignidade da pessoa
humana – de um lado, o direito ao mínimo existencial; de outro, o direito à
satisfação da execução”. Assim, ponderou que após diversas tentativas
frustradas de satisfazer seu crédito, vez que a execução se arrastava desde
2012, a concessão da penhora parcial dos recebimentos do devedor era a medida
judicial adequada para o caso em análise.
É incontroversa a possibilidade de se mitigar a
regra da impenhorabilidade do salário, sendo possível a realização de penhora
parcial quando demonstrado que outras tentativas de satisfação do crédito já
foram realizadas, sem sucesso, bem como que o percentual perseguido não
comprometa a subsistência do devedor e, por outro, possa garantir a satisfação
do crédito e o cumprimento da tutela judicial, harmonizando ambas as vertentes
do princípio da dignidade da pessoa humana, que é o que no final das contas se
pretende proteger.
Renata
Martins Belmonte - líder de equipe da área de recuperação de
créditos do escritório Albuquerque Melo Advogados.
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