Aceitar que morreremos é uma tarefa árdua. Por isso, é muito mais cômodo colocar a morte no campo das possibilidades. E quando ela irrompe, parece sempre fortuita. É curioso como construímos uma sociedade inteira em torno dessa ilusão, a de que o pior não acontecerá conosco. Até que aconteça, como um espanto.
Heidegger é o autor da frase que uso como título
desse texto. Para ele, a autenticidade da vida ocorre com a compreensão de que
somos seres para a morte. Toda nossa ação efetiva no mundo deriva dessa
certeza. Mas é razoável que muitos não aceitem a responsabilidade que advém da
aceitação da morte como inevitável, pois a vida passa a ter uma dimensão mais
urgente quando sabemos que os dias estão realmente contados. Cada atitude tem o
peso do incontornável, do irreversível, e, por isso, nossos projetos de futuro
precisam ser muito mais cuidados, sopesados, afinal não temos todo o tempo.
Aquilo que ficar como obra será a única possibilidade de permanecermos nos
outros, em suas memórias. Isso é a vida. E só.
Bom, é claro que não é nada fácil termos essa
consciência de nossa finitude. Lógico que sabemos que não somos eternos, mas
quase sempre agimos como se fôssemos, evadindo-nos da realidade. Quando somos
jovens, olhamos para os velhos como se eles fossem os únicos em perigo. Quando
as décadas vão se acumulando, buscamos intensamente retardar a ideia de assumir
a velhice, porque com ela vem a possibilidade de ir. Quando aceitamos a ideia
e, finalmente, expressamos “estou próximo do fim", os outros nos advertem:
“imagina, vira essa boca pra lá, você tá forte ainda, vai viver muitos anos”.
Curiosa essa fabulação, esse auto-engano, principalmente pelas consequências
que acarreta.
Dizem que Stalin, o ditador soviético responsável
pelo assassinato (pela violência ou pela fome) de dezenas de milhões de seres
humanos, é o autor da frase: “uma morte é uma tragédia; um milhão de mortes,
uma estatística”. Tendemos a rejeitar a morte na direta proporção da sua
presença. Quando um morre, compadecemo-nos. Quando muitos morrem, afastamo-nos;
quando centenas de milhares morrem, entediamo-nos. Não queremos mais falar do
assunto, nem tangenciá-lo. Como se não tivéssemos relação com isso, acusamos os
que noticiam, chamando-os de abutres, de pregadores do caos. “Para que falar
tanto sobre isso?”, muitos dizem, como se temessem que a morte pudesse ser
atraída quando tão nomeada. Como se ela não fizesse parte da vida como o ponto
faz parte da frase, quando essa termina.
O negacionismo pode ter sua origem nesse comportamento
que Heidegger chamou de “inautêntico" e Sartre de “má fé”, e que pode ser
expresso nesse escapismo de assumirmos que somos seres lançados no mundo, com
uma trajetória que é resultado exclusivamente de nossas escolhas até o
momento em que essa vida cesse e sobrem só os rastros dessa breve passagem,
alguns traços fortes e brilhantes, outros tênues como marcas na areia da praia.
O problema que temos em mãos é que essa negação da
morte tem provocado muitas mortes, (as tais estatísticas da frase do Stalin).
Os negacionistas não aceitam a responsabilidade de agir para evitar ou tentar
evitar o cancelamento dos dias de vida dos outros. E ainda, em um
paradoxo cínico, dizem: “lamento as mortes, mas vida que segue”.
Cada um tem o direito de viver os dias que lhe
cabem. Os que sabem o quanto esses dias são preciosos temem que outros, cuja
vida é um deserto de significados, roubem-lhe os meses e anos com os quais
desejam realizar o que consideram importante, provavelmente mais importante do
que uma noite em uma balada lotada, um bar cheio, um balneário onde não cabe
mais nenhum guarda-sol.
Sei que vou morrer e essa certeza apenas me anima
para preencher cada dia que vivo com ações e projetos de expansão da minha
presença no mundo. Por isso, é preciso esclarecer que a possibilidade da morte
antecipada que nos rodeia nesses tempos não é causada pelo vírus, mas pelas
pessoas que não acreditam que serão afetadas por ele, porque são muito boas,
porque são muito ricas ou porque consideram-se muito importantes ou espertas. E
eu temo essas pessoas porque elas não respondem por seus atos, por sua
negligência, por sua insensibilidade. Elas estão à solta e nós ficamos por
nossa própria conta e risco na luta para proteger nossos dias de existência
nesse mundo.
Daniel Medeiros - doutor
em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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