O 24 de fevereiro
representa para as brasileiras o pontapé inicial das mulheres na conquista de
seus direitos políticos e na igualdade de gênero. Foi nessa data, em 1932, que
se permitiu a elas participarem da vida política do país por meio do voto. É
verdade que, num primeiro momento, o sufrágio garantiu algum poder de decisão
apenas às viúvas com renda própria e às mulheres casadas e autorizadas pelos
maridos, todas escolarizadas e em geral brancas. As analfabetas, grupo em sua
maioria formado por mulheres pretas, só conquistou esse direito em 1985. Passados
quase 90 anos desde o decreto 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, assinado por
Getúlio Vargas, é válido o exercício de mensurar até que ponto as mulheres
estão de fato inclusas no espaço político do país e a sua integridade
participativa assegurada pelas instituições.
Segundo levantamento
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do total de eleitores aptos a participar
das eleições municipais de 2020, que eram de 147,9 milhões de pessoas, 52,5%
eram mulheres. No entanto, para além do voto, é importante garantir a ela
acesso aos canais de decisão, para participação efetiva na vida institucional.
Essa participação não é um fim em si mesmo, mas um enriquecimento da
democracia.
No âmbito dos
Poderes da República, em especial no Executivo, as mulheres ainda são minoria.
Nas últimas eleições municipais, por exemplo, foram eleitas 651 prefeitas
(12,1%) e eleitos 4.750 prefeitos (87,9%) no país, conforme o Tribunal Superior
Eleitoral.
Desde 2009, os
partidos são obrigados a ter ao menos três mulheres para cada sete homens
concorrendo às eleições. Além disso, a partir de 2018, as siglas precisam
destinar, no mínimo, 30% do que recebem do fundo eleitoral às candidatas. Quem
não cumpre essa regra pode ficar sem os recursos e ainda ter toda a chapa de
vereadores cassada pela Justiça Eleitoral. Ainda assim a distância entre se
candidatar e se eleger para elas continua abissal.
"O que vemos é
que os partidos não estão verdadeiramente preocupados em promover igualdade de
gênero e de raça. A cota de 30% de candidaturas só foi cumprida recentemente e
ainda em meio a inúmeras denúncias de candidaturas- laranja", observa
Hannah Maurici Aflalo, mestre em Ciência Política e cofundadora de A Tenda das
Candidatas, projeto de atendimento voluntário para candidaturas e formação
política. "Dentre as candidatas que atendemos n’A Tenda, o que mais
vivenciamos foram promessas não cumpridas de financiamento e candidatas sendo
totalmente negligenciadas pelos partidos", salienta a formadora política.
As mulheres que
conseguem alguma viabilidade política dentro de seus partidos precisam ainda
enfrentar as barreiras sociais e os estereótipos de gênero que se manifestam de
maneira violenta, em especial na internet, como mostrou em novembro último, ao
término do segundo turno das eleições municipais, o relatório do MonitorA, um
observatório de violência política contra candidatas nas redes, da Revista
AzMina e do InternetLab em parceria do Instituto Update.
O estudo monitorou a
dinâmica do discurso de ódio no Twitter para homens e mulheres e concluiu que
no primeiro turno as candidaturas femininas acompanhadas pelo observatório
receberam, em média, 40 xingamentos por dia. A análise do discurso mostrou que
mulheres foram atacadas com termos ofensivos relacionados aos seus atributos físicos,
assédio moral, sexual e intelectual, descrédito, gordofobia, transfobia e
racismo, enquanto homens foram ofendidos por trabalhos ou posicionamentos
específicos.
Na ocasião, as
mulheres mais atacadas foram as então candidatas à prefeitura de São Paulo,
Joice Hasselmann (PSL); de Porto Alegre, Manuela D´Ávila (PCdoB); e do Rio de
Janeiro, Benedita da Silva (PT).
Caso singular
trazido pelo MonitorA foi o ataque sofrido pela então candidata à prefeitura de
Ribeirão Preto Suely Vilela (PSB). A professora universitária foi chamada de
"arrogante" por um usuário no Twitter por ter no currículo o cargo de
reitora na Universidade de São Paulo (USP). Vilela foi a primeira mulher a
ocupar a posição nos 71 anos de existência da universidade. Em outras palavras,
a professora foi considerada segura de si demais, em vez de qualificada para o
cargo.
Para Hannah Maurici
Aflalo, são os estereótipos de gênero, ou seja, as caraterísticas e papéis
atribuídos a cada um dos gêneros que contribuem para a ideia de que a política
é um lugar inóspito para mulheres. "As mulheres crescem sendo convencidas
de que não são boas para ocupar esses espaços e o eleitorado é educado de forma
a cumprir essa falsa afirmação", diz a cientista. E acrescenta: "É
preciso investimento em formação política dentro dos partidos e para a
sociedade como um todo, de forma a descontruir os estereótipos e a cultura
machista e de ódio às mulheres, às pessoas negras, aos LGBTQIA+ e aos corpos
divergentes para que a entrada na política não seja considerada uma ameaça, mas
um direito".
Mestre em Ciência
Política pela USP e pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do CEBRAP
(Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Beatriz Rodrigues Sanchez dia
que "a violência política e de gênero é uma grave ameaça ao regime
democrático. Com o tímido aumento da participação das mulheres na política no
Brasil, houve também o aumento desses casos. É preciso que as instituições
criem mecanismos eficazes de fiscalização e aplicação de penalidades, a fim de
prevenir e combater esse tipo de violência".
Apesar desses
obstáculos, o último pleito eleitoral, realizado em 2020, as urnas deram uma
sacudida no sistema majoritariamente formado por homens, em geral mais velhos,
ricos, brancos e heterossexuais. Mulheres negras, pessoas transexuais,
indígenas e quilombolas conquistaram vitórias sem precedentes para as Câmaras
de Vereadores espalhadas pelo país. Em São Paulo, Erika Hilton (PSOL),
conquistou mais de 50 mil votos e, aos 27 anos, tornou-se a mulher mais votada
entre os eleitos para a vereança na cidade de São Paulo.
Mas a trajetória das
mulheres no Legislativo não é tranquila. "Elas são silenciadas o tempo
todo dentro do Parlamento. As parlamentares mães não contam com uma estrutura
adequada para o cuidado com os filhos", afirma Sanchez.
Exemplo máximo de
violência política de gênero dentro de uma casa parlamentar foi sofrido
recentemente pela deputada estaduale advogada feminista,
Isa Penna (Psol), na
Assembleia Legislativa. Eleita em 2018 com 53.838 votos, a deputada foi vítima
de assédio e importunação sexual. Ela teve o seio apalpado pelo deputado
Fernando Cury. Cury é alvo de um processo de expulsão no seu partido, o
Cidadania, de uma representação no Ministério Público por importunação sexual e
ameaçado de cassação pelo Conselho de Ética da Alesp.
É inegável que a
conquista de 1932 abriu portas e garantiu avanços às mulheres brasileiras, mas
os dados e as análises das cientistas políticas entrevistadas pela reportagem
da CAASP demonstram que ainda há um amplo caminho a ser trilhado pelas mulheres
na política. Enquanto isso não ocorre, toda a sociedade perde. Afinal,
escreveuo filósofo e economista político francês Charles Fourier no início do
século XIX: "O grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro
natural pelo qual se mede a emancipação geral de um povo".
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