quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Prece de final de ano a um cavalo

Peço minhas sinceras desculpas a você, senhor cavalo. Porque muitos aqui acham que nasceu para fazer força, dentro desse determinismo que julgam ser a bússola da vida dos tolos. Que veio a este mundo para puxar, carregar, transportar, correr, dar saltos, subir e descer, não na liberdade dos campos pintados em telas a óleo, mas sob a tirano relho humano. Inclusive entre aqueles que se dizem amantes dos animais, defensores e outros termos simpáticos, há que use seu corpo sem peso algum na consciência. Tem uns que até montam em você – mesmo que isso signifique ter que carregar uma pessoa nas costas, usando um desagradável ferro na boca, para ser guiado pelo caminho que essa carga viva escolhe, e outros acessórios. Apetrechos esses que, usados em humanos, fazem parte do fetiche sadomasoquista. Usados em equino, é bonito, é cultura, é ‘gostar de cavalos’. Típico da esquizofrenia moral humana, de Corcel Negro a Meu Querido Pônei.

Peço perdão porque esqueceram, muitos desses bem-intencionados, que você veio ao mundo somente, e esse é um ponto importante, porque um humano planejou sua vida/vinda, e já era dono de sua mãe ou pai, e almejava aumentar seu número de escravos-de-quatro-patas.

Assumo meu pecado de ter permitido, mesmo sem saber, que lhe raspassem os dentes, lhe separassem de sua mãe e, de forma especial, lhe tenham matriculado como aluno na escola da doma. Porque, depois, do carroceiro à patricinha rural, todos querem que você esteja obediente, senciente, digo, consciente de sua função social de carregar humanos, conhecedor de todas as vontades do senhorio de seu lombo. Não há, ainda, como vir a este mundo e não ser colocado na linha de montagem que o sistema exige, dando o papel a cada um. A você, coube uma função ingrata, dolorosa, extenuante e idiotamente chamada de heroica.

Peço humildes desculpas por você ter sido alistado nas forças armadas, independente de sua vontade. De ter perecido em guerras, de ter enfrentado multidões em fúria, de ter desfilado como um jipe mais brilhoso. De ter tido o destino de carregar em uma carroça o peso do desequilíbrio social, justamente em um país onde o desdentado vota no sorridente cínico. De ter acabado no curral das tradições hegemônicas, e agora há um público inteiro esperando você entrar na arena do rodeio. De ter que correr pois alguém está apostando em suas pernas, e apesar do glamour e das madames de chapéu, todos sabem que sua saúde vale menos que seu seguro de vida. Pois você é um investimento, e até seu esperma entra nesse cálculo.

Peço perdão por sua exploração depravada, em locais/filmes onde você é objeto de prazer humano.

Escusas. Não há limites para a imaginação, pois você nasceu forte, disposto, vigoroso e, tendo aprendido a ética da dor, obedientemente amigo. O que muitos acham que é natural, mas foste ensinado a temer aquele animal de duas pernas, pronto a subjugar pelo ferro e laço. Lamento sua condição de trabalhador escravo, cuja opção à morte no asfalto é o brete final de um abatedouro – e muitos aqui ainda acham que isso é lenda, e que você, como herói do faroeste, não cai zonzo no chão de concreto sujo para a degola final. Essa bênção gelada que encerra uma vida de dor, medo, sangue, exaustão e trabalho compulsório não-remunerado.

 



Texto e foto de

Marcio De Almeida Bueno -  jornalista e diretor-geral da ONG

Vanguarda Abolicionista
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