Um consórcio de pesquisadores de seis
universidades brasileiras, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e pela FAPESP, sequenciou o genoma da Frieseomelitta varia, abelha sem ferrão nativa do
Brasil conhecida como marmelada. O resultado aumenta a compreensão sobre a
evolução destas abelhas e abre caminho para o melhoramento de espécies com
potencial de uso comercial.
Os resultados foram publicados na BMC Genomics por pesquisadores
das universidades de São Paulo (USP), Estadual Paulista (Unesp), Federal de São
Carlos (UFSCar), Federal de Alfenas (UFAL), Federal do Vale do Jequitinhonha e
Mucuri (UFVJM) e Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
“Escolhemos uma espécie para realizar
esse projeto-piloto, a fim de testar nossa capacidade de sequenciar um genoma
inteiro. Essa é uma espécie emblemática, uma vez que suas operárias são
completamente estéreis. É uma característica que a difere da grande maioria das
abelhas do grupo Meliponini, das abelhas sem ferrão”, diz Klaus
Hartmann Hartfelder, professor da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e um dos autores do trabalho.
O estudo integra um projeto
apoiado pela FAPESP e
coordenado por Zilá Luz Paulino Simões, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto (FFCLRP) da USP e coautora do artigo. O sequenciamento foi realizado
no Laboratório Central de Tecnologias de Alto Desempenho em Ciências da Vida
(LaCTAD) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também apoiado
pela FAPESP.
O
sequenciamento revelou uma grande quantidade de sequências repetidas dos
chamados RNAs longos não codificantes, que têm função regulatória. Em humanos,
por exemplo, esses RNAs estão relacionados a processos de regulação do
desenvolvimento, inclusive do sistema nervoso central. Na marmelada, os
pesquisadores consideram que essas sequências podem estar ligadas ao processo
de desenvolvimento do ovário das abelhas, que torna as operárias completamente estéreis,
enquanto a rainha é altamente fértil.
“Como na grande maioria dos insetos
sociais, os ovos são iguais, dali pode sair tanto uma operária quanto uma
rainha. Durante o desenvolvimento da larva, porém, acontece a divergência em
algumas das vias moleculares de sinalização, que faz com que essas abelhas se
diferenciem em dois tipos de indivíduos, a rainha fértil e muitas operárias
inférteis. Na abelha europeia (Apis mellifera) isso
se dá por conta da alimentação diferente que a rainha recebe na fase larval,
mas nas abelhas sem ferrão parece ser mais uma questão de quantidade de
alimento”, diz Hartfelder.
Vantagem evolutiva
O grupo encontrou ainda um alto grau
de conservação (sintenia) de um bloco de genes descrito na Apis mellifera relacionado ao comportamento de
estocagem de pólen dentro da colônia. Essa é uma característica de espécies
altamente sociais, enquanto outras coletam apenas o pólen suficiente para
alimentar as larvas.
“O que nos surpreendeu é que a A. mellifera e as abelhas sem ferrão divergiram em
linhagens diferentes há mais de 70 milhões de anos. É muito tempo e, mesmo
assim, essa característica foi se mantendo ao longo da evolução. Temos de
verificar se o mesmo acontece com outras abelhas para saber se isso ocorreu por
puro acaso ou se garantiu uma vantagem evolutiva”, explica o pesquisador.
Outro
achado interessante foi a diferença de outras abelhas na organização da ordem
dos genes do genoma mitocondrial, que também foi sequenciado nesse trabalho. A
alteração na ordem gênica da usina de energia da célula pode ter implicações
evolutivas a serem estudadas com mais profundidade no futuro.
Polinização em cultivo de alimentos
O nome
popular da espécie faz referência à cor de seus ninhos, que tem um revestimento
externo marrom por conta da aplicação de resina que as abelhas coletam de
plantas. O material tem propriedades repelentes, o que afasta formigas e outros
potenciais invasores do local de entrada.
A espécie
produz pouco mel, mas por sua docilidade e larga distribuição, principalmente no
Sudeste do Brasil, tem potencial para servir como polinizadora em cultivos de
alimentos de alto valor agregado em estufas. A abelha europeia não se adapta
bem a esses ambientes fechados, mas as abelhas sem ferrão têm grande potencial
como polinizadores destes cultivos.
As descobertas do genoma da marmelada
servem ainda de guia para a busca de características desejadas em outras
espécies de interesse comercial, como a jataí (Tetragonisca angustula).
No trabalho atual, o grupo utilizou a
experiência adquirida nos sequenciamentos de genomas de abelhas realizados por
consórcios internacionais. Em 2006, os pesquisadores fizeram parte do grupo que
sequenciou o genoma da Apis mellifera, a
abelha europeia mais usada na produção de mel. O resultado foi publicado na Nature.
Em 2015, o grupo participou de um
trabalho publicado na Science que sequenciou 10
genomas de abelhas, entre eles o da mandaçaia (Melipona quadrifasciata),
a primeira espécie brasileira de abelhas sem ferrão a ter o genoma sequenciado.
No mesmo ano, participou ainda da publicação do genoma de duas mamangavas, insetos da mesma linhagem das
abelhas do gênero Apis e das abelhas sem ferrão.
O próximo
passo da pesquisa é estudar melhor algumas regiões que chamaram atenção do
genoma da marmelada. Além disso, graças ao conhecimento adquirido durante o
trabalho, o grupo já selecionou outras cinco espécies que terão o genoma
sequenciado.
O artigo The nuclear and mitochondrial genomes of Frieseomelitta varia – a
highly eusocial stingless bee (Meliponini) with a permanently sterile worker
caste pode ser lido em: https://bmcgenomics.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12864-020-06784-8.
André Julião
Agência FAPESP
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