Pesquisadores
da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu identificaram dois genes
altamente expressos na placenta humana que codificam proteínas que poderiam
servir como uma espécie de “porta alternativa” para a entrada do novo
coronavírus (SARS-CoV-2) nas células: a dipeptidil peptidase 4 (DPP4) e a
catepsina L (CTSL).
Detalhes
da pesquisa, apoiada pela
FAPESP, foram descritos em artigo disponível
na plataforma bioRxiv (sem revisão por
pares).
Como explicam
os autores no texto, as células da placenta expressam, durante toda a gestação,
quantidades muito pequenas das duas principais moléculas usadas pelo SARS-CoV-2
para infectar células humanas: a enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2) e a
serino-protease transmembranar 2 (TMPRSS2). No entanto, a presença do vírus
nesse órgão já foi confirmada, em estudos de outros grupos, tanto por
microscopia eletrônica quanto por RT-PCR (reação em cadeia da polimerase após
transcrição reversa), exame capaz de identificar o RNA viral usado para
diagnosticar a COVID-19. Além disso, o vírus já foi detectado no organismo de
recém-nascidos. Ainda não se sabe se a transmissão ocorreu dentro do útero ou
durante o parto.
“Partindo
dessas evidências, decidimos investigar se haveria um mecanismo alternativo
capaz de permitir a infecção das células placentárias, ainda que de forma menos
eficiente do que o mediado pela proteína ACE2. A presença do SARS-CoV-2 na
placenta poderia levar à transmissão intrauterina do novo coronavírus, condição
associada a prejuízos no desenvolvimento fetal”, diz à Agência FAPESP Luis Antonio Justulin,
professor do Instituto de Biociências de Botucatu (IBB-Unesp).
No
Departamento de Biologia Estrutural e Funcional do IBB-Unesp, o pesquisador
coordena um projeto dedicado a investigar como diferentes condições vivenciadas
no útero materno e ao longo da primeira infância podem impactar a saúde da
prole ao longo da vida, de acordo com o conceito da Origem Desenvolvimentista
de Saúde e Doença (DOHaD). Em um experimento feito com ratos, por exemplo, o
grupo mostrou que filhos de mães alimentadas com dieta pobre em proteínas
durante o período de gestação e lactação correm risco consideravelmente maior
de desenvolver câncer de próstata ao envelhecer (leia mais em agencia.fapesp.br/28356).
No caso do
SARS-CoV-2, ainda não há relatos de bebês nascidos com sequelas decorrentes da
infecção materna. Contudo, estudos já mostraram que o vírus pode causar
alterações vasculares na placenta que, em teoria, poderiam prejudicar o aporte
de oxigênio e nutrientes para o feto.
Para
entender melhor como o novo coronavírus interage com as células da placenta, o
grupo liderado por Justulin decidiu analisar dados de expressão gênica de
diferentes tipos de células placentárias em diferentes momentos da gestação.
Foram usados na pesquisa dados obtidos em estudos anteriores e depositados em
repositórios públicos, como o Gene Expression Omnibus (GEO). O grupo então cruzou esse
achado relacionado à placenta com o conteúdo de outro banco de dados
denominado P-HIPSTer (sigla em inglês
para predição de interações moleculares patógeno-hospedeiro por similaridade de
estrutura), cujo algoritmo explora informações baseadas em sequências e
estruturas moleculares para inferir a probabilidade de interações entre vírus e
proteínas humanas. Esse Human-virus interactome atlas mapeia
possíveis redes de interação entre proteínas humanas e proteínas de diversos
vírus, possibilitando a identificação de potenciais alvos terapêuticos.
A
estratégia permitiu aos pesquisadores avaliar quais genes expressos durante a
gravidez codificam proteínas com maior potencial para interagir com as
principais proteínas de diferentes coronavírus, entre eles os SARS-CoV-2, o
SARS-CoV (causador da síndrome respiratória aguda grave) e o MERS-CoV (da
síndrome respiratória do Oriente Médio).
“Fizemos
dois tipos de análise. Inicialmente avaliamos a interação das proteínas virais
com todas as proteínas placentárias. Em seguida, avaliamos essa interação
considerando quais genes tinham a expressão diminuída ou aumentada ao longo da
gravidez”, explica Justulin.
Com o
objetivo de descobrir especificamente quais células da placenta expressam os
genes das proteínas identificadas que potencialmente interagem com o vírus, o
grupo recorreu a conjuntos de dados públicos disponíveis nos bancos COVID-19 Cell Atlas e Human Cell Atlas Data Portal. Esses
repositórios possuem dados de sequenciamento de RNA de célula única (do inglês,
single-cell RNA-Seq). Com esse tipo de análise, é possível obter o
transcriptoma de cada uma das células que compõem um tecido, em vez de olhar o
tecido como um todo.
As
análises por bioinformática foram realizadas em colaboração com os
pesquisadores Robson Carvalho (IBB-Unesp)
e Célia Regina Nogueira (Departamento
de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Botucatu), além da aluna de doutorado Sarah Santiloni Cury (IBB-Unesp).
Principais
achados
As
análises e simulações revelaram que as células trofoblásticas que compõem as
vilosidades coriônicas da placenta – parte fetal do órgão – coexpressam altas
quantidades de DPP4 e de CSTL durante toda a gestação.
“A DPP4 já
foi relacionada à infecção pelo MERS-CoV em estudos anteriores e, a CSTL, ao
SARS-CoV. Fizemos algumas análises de tecidos fetais e vimos que essas duas
proteínas também estão expressas no feto em quantidades significativas”, conta
Justulin.
O estudo
revelou ainda que ao longo da gravidez há uma grande alteração na expressão dos
genes DAAM1 e PAICS (enquanto
o primeiro aumenta, o segundo diminui com o passar dos trimestres). Ambos
codificam proteínas que, segundo as simulações computacionais realizadas na
Unesp, são capazes de interagir com proteínas de coronavírus.
Na
avaliação dos autores, o artigo recém-divulgado apresenta as primeiras
evidências da existência de um mecanismo alternativo de infecção das células
placentárias pelo SARS-CoV-2, que precisará ser confirmado e melhor
compreendido em estudos futuros. Uma das ideias do grupo é analisar a
expressão gênica na placenta de gestantes que contraíram COVID-19.
“Também
pretendemos infectar células placentárias in vitro e
observar o que acontece em termos de expressão gênica. Mas esse tipo de
experimento requer um laboratório com nível 3 de biossegurança e, para isso,
estamos firmando parcerias com grupos de outras instituições”, diz Justulin.
O trabalho
divulgado na bioRxiv contou com apoio da
FAPESP também por meio de um auxílio concedido
a Carvalho e de uma Bolsa de Doutorado concedida
a Flávia Bessi Constantino,
primeira autora.
“Neste
momento de dificuldade mundial é gratificante poder contribuir de alguma forma
para desvendar os mecanismos de infecção do vírus. Como nossa linha de pesquisa
é relacionada com as fases iniciais do desenvolvimento, ficamos intrigados com
a possibilidade de o vírus infectar a placenta e causar complicações para o
desenvolvimento embrionário. Foi assim que surgiu a ideia do trabalho”, afirma
Constantino.
O
artigo Prediction of non-canonical routes for SARS-CoV-2 infection in
human placenta cells pode ser lido em www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.06.12.148411v1.full.pdf.
Karina Toledo
Agência
FAPESP
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