Minha mãe eu conheço desde quando ela tinha 6 anos
e ficou órfã de pai e minha vó era muito pobre para sustentar todos os filhos.
Minha mãe deixou a escola aos 9 anos para que minha tia pudesse começar a
estudar porque não havia dinheiro para comprar uniforme para as duas. Minha mãe
começou a trabalhar aos 12 anos, ajudando em um salão de cabeleireiro. Minha
mãe comprou o primeiro sapato com quinze anos.
Ouço essas histórias sobre minha mãe e sonho triste
com o olhar triste dela, com o choro triste dela. No recreio, minha mãe colava
o rosto no portão e olhava para a rua para não ver os outros alunos lanchando
porque minha mãe não tinha o que comer. Minha mãe que certa vez ganhou uns
trocados no jogo do bicho e comprou uma roda de salsicha. Minha mãe que
perguntava para as pessoas nas ruas onde encontrar trabalho e um dia a mandaram
para uma fábrica onde estavam contratando jovens para enxugar gelo e ela foi
toda esperançosa de poder dar uma boa notícia em casa. Minha mãe que teve
um quisto na gengiva e, como não tinha dinheiro para se tratar, o dentista
arrancou todos os dentes da sua arcada superior. E minha mãe ficou anos sem
sorrir com vergonha por não ter dentes.
Minha mãe que nunca conheceu o ócio e nunca
conheceu a Ciência. Minha mãe que entrou pela primeira vez em uma universidade
pública quando eu, filho dela, fui defender minha dissertação de mestrado e
pude homenageá-la. Minha mãe deixou suas lágrimas no piso do salão nobre da
Universidade, ela que sempre quis estudar mas parou porque não tinha dinheiro
para comprar uniforme. Minha mãe que já teve todas as doenças e que não morreu
porque precisava deixar seu testemunho sobre as injustiças gratuitas do mundo.
Minha mãe que era paciente para me ensinar sobre coisas que ela mesma não
sabia, mas, com o livro na mão, tomava-me os pontos dos conhecimentos que lhe
foram negados na infância. Minha mãe que era dura com a minha preguiça porque a
preguiça era um fantasma sedutor que a assombrava desde sempre, sem que ela
pudesse afastar de perto dela. Minha mãe que trabalhou a vida toda e ainda
hoje, aos 80 anos, sonha em viajar, em conhecer o mundo, sonho da menina que
arrastava o chinelinho pelas ruas enlameadas da Paranaguá dos anos 40, magrinha
com olhar guloso sobre tudo que era tão pouco, tão minguado.
Ninguém no mundo é, para mim, um exemplo maior do
que a minha mãe. Nem Mandela, nem Gandhi, nem Teresa de Calcutá, nem Buda, nem
Jesus crucificado. Porque o olhar de minha mãe eu conheço, toco seus dedos
enrugados que ainda trabalham, beijo sua cabeça de cabelos finos e ralos, ouço
sua risada engasgada por falta de prática. Minha mãe é uma sobrevivente do
campo de concentração da injustiça social e da falta de escrúpulos do mundo que
faz do mérito uma piada de mau gosto. Minha mãe é uma sobrevivente de uma
política de extermínio de sonhos e desejos, de possibilidades erráticas e
fugazes, de promessas de um futuro na fábrica de enxugar gelo.
Mas minha mãe sobreviveu e me ensinou para ser uma
voz, acreditou na minha voz, ensaiou comigo a minha voz, abriu a janela para
mim, mostrou o horizonte que ela mesma não enxergava, mas que sabia que ficava
para aquele lado. Minha mãe é uma mulher comum. Muitas mães foram, são e serão
como ela. Elas, essas mães, são a esperança de que o jardim dos homens não
desertifique. Com suas mãos enrugadas e olhos baços, o corpo como território de
dores impossíveis, minha mãe é o meu futuro. Quando eu crescer, peço muito para
ser como ela.
Daniel Medeiros - doutor em
Educação Histórica pela UFPR, consultor, palestrante e professor de História e
Filosofia no Curso Positivo.
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