O gene ACE-2 expressa o RNA mensageiro que
orienta a produção da enzima conversora de angiotensina 2 - molécula usada pelo
novo coronavírus para infectar as células do pulmão (imagem: Wikimedia
Commons)
Estudo feito na Universidade de São Paulo (USP) pode ajudar a entender
por que o índice de mortalidade por COVID-19 é maior entre pessoas que sofrem
com problemas crônicos de saúde, como hipertensão, diabetes ou doença pulmonar
obstrutiva crônica (DPOC).
Segundo as conclusões, divulgadas na
plataforma medRxiv, alterações no metabolismo causadas por essas doenças
podem desencadear uma série de eventos bioquímicos que levam a um aumento na
expressão do gene ACE-2, responsável por codificar uma proteína à qual o
vírus se conecta para infectar as células pulmonares.
“Nossa hipótese é que o aumento na expressão de ACE-2 e de outros
genes facilitadores da infecção – entre eles TMPRSS2 e FURIN –
faz com que esses pacientes tenham uma quantidade maior de células afetadas
pelo vírus SARS-CoV-2 e, consequentemente, um quadro mais severo da doença. Mas
é algo que ainda precisa ser confirmado por estudos experimentais”, afirma Helder Nakaya, professor
da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF-USP) e coordenador da pesquisa, apoiada pela FAPESP.
Os achados, segundo o pesquisador, podem ajudar na identificação de
alvos moleculares para um futuro desenvolvimento de fármacos.
Como explica Nakaya, o gene ACE-2 (ECA-2 em português)
expressa o RNA mensageiro que orienta a produção da enzima conversora de
angiotensina 2 – molécula que integra o chamado sistema
renina-angiotensina-aldosterona, responsável pelo controle da pressão arterial.
“Depois do surto de SARS [síndrome respiratória aguda grave] em 2003,
cientistas descobriram que o gene ACE-2 era crucial para a entrada do
vírus [SARS-CoV] nas células humanas. Agora, o mesmo foi observado em relação
ao novo coronavírus. Por esse motivo, decidimos investigar se sua expressão
estava alterada em portadores de doenças crônicas”, conta o pesquisador, que
também integra a equipe do Centro de Pesquisa em Doenças
Inflamatórias (CRID), um Centro de
Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP na Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto (FMRP-USP).
Ferramentas de bioinformática
O primeiro passo da investigação foi buscar na base de dados da Medline – que abrange quase 5 mil
revistas publicadas em mais de 70 países e é mantida pela Biblioteca Nacional
de Medicina dos Estados Unidos – todos os artigos científicos relacionados às
doenças consideradas de interesse pelo grupo, entre elas hipertensão, diabetes,
doenças cardiovasculares, DPOC, câncer de pulmão, insuficiência renal crônica,
doenças autoimune, fibrose pulmonar, asma e hipertensão pulmonar.
“Identificamos 8,7 mil artigos e, como seria inviável ler todos eles,
usamos uma ferramenta de mineração de texto para filtrar apenas os que
continham informações sobre os genes envolvidos nessas doenças. Chegamos a um
conjunto de genes entre os quais estava ACE-2”, diz Nakaya à Agência
FAPESP.
Em seguida, os pesquisadores reanalisaram dados transcritômicos
(relativos ao nível de RNA expresso pelos mais de 25 mil genes humanos) em mais
de 700 amostras de pulmão disponíveis em repositórios públicos, como o Gene
Expression Omnibus (GEO).
“São dados de livre acesso coletados em estudos anteriores. O que
fizemos foi comparar o perfil de expressão gênica de portadores de doenças
crônicas que afetam o pulmão com o de pessoas saudáveis, que serviram como
controle. Comparamos, inclusive, o perfil de fumantes e de não fumantes”,
explica Nakaya. “A ideia foi olhar o pulmão de pessoas que não estavam
infectadas pelo novo coronavírus, mas que tinham doenças que as tornavam mais
suscetíveis a manifestações severas de COVID-19 para tentar entender o que
havia de diferente.”
De acordo com Nakaya, a meta-análise revelou que a expressão de ACE-2
estava, de fato, significativamente aumentada nas doenças.
O passo seguinte foi descobrir quais outros genes possuíam perfis de expressão
similares ou inversos ao de ACE-2.
“Esse tipo de análise de correlação ajuda a orientar as hipóteses,
embora não permita estabelecer uma relação de causalidade. Assim, em vez de
olhar para 500 genes, podemos nos concentrar em oito cuja expressão está
correlacionada com aquele de interesse e, no futuro, fazer experimentos para
descobrir o que acontece quando são inibidos ou estimulados”, explica Nakaya.
O grupo então percebeu que nas amostras com expressão aumentada de ACE-2
também estavam mais expressas algumas enzimas capazes de modificar o
funcionamento de proteínas conhecidas como histonas, que ficam no núcleo das
células – ligadas ao DNA – e ajudam a regular a expressão gênica. No jargão
científico, esse fenômeno bioquímico é conhecido como modificação epigenética
(quando ocorre mudança no padrão de expressão do gene sem qualquer alteração no
DNA).
“Nossos achados sugerem que essas doenças crônicas mudam – ainda não se
sabe ao certo como – o programa epigenético do organismo, tornando essas enzimas
mais ativas e, consequentemente, aumentando a expressão de ACE-2 e
favorecendo a infecção das células pulmonares pelo SARS-CoV-2”, diz Nakaya.
A descoberta, segundo o pesquisador, abre caminho para a busca de
compostos capazes de inibir a atividade de algumas dessas enzimas modificadoras
de histonas, o que poderia modular a expressão de ACE-2 e, desse modo,
proteger o pulmão dos pacientes.
O artigo ACE2 Expression is Increased in the Lungs of Patients with
Comorbidities Associated with Severe COVID-19 – ainda em versão pré-print
(não revisada por pares) – pode ser lido em: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.03.21.20040261v1.
Karina Toledo
Agência FAPESP
http://agencia.fapesp.br/paciente-com-doenca-cronica-tem-expressao-aumentada-de-gene-que-facilita-infeccao-pelo-coronavirus/32863/
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