Pesquisadores
afirmam que o organismo humano transita entre duas estratégias de
combate a infecções – resistência ao patógeno por meio da febre e tolerância
temporária promovida por hipotermia – e ambas devem ser consideradas ao tratar
casos graves (imagem: Freepik)
O sistema imunológico humano dispõe de duas
estratégias pré-programadas para lidar com infecções. Uma é a febre, mecanismo
de resistência cujo objetivo é eliminar o patógeno pelo aumento da temperatura
corporal. A outra vai na direção oposta: promover o resfriamento controlado do
corpo para permitir a convivência temporária com o invasor, preservando órgãos
e sistemas. Os mecanismos se alternam de acordo com a força do ataque e o
estado geral de saúde do paciente.
Este conceito inovador foi apresentado recentemente
por dois pesquisadores na revista Trends in Endocrinology and
Metabolism, da Cell Press. No artigo, propõe-se também
combinar essas duas estratégias naturais de defesa para estudar e tratar a
sepse – inflamação sistêmica geralmente desencadeada por uma infecção
localizada que saiu de controle e principal causa de morte nas unidades de
terapia intensiva (UTIs) brasileiras.
O trabalho, apoiado pela FAPESP, é assinado por Alexandre Steiner, do
Departamento de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade
de São Paulo (ICB-USP), e Andrej Romanovsky, do Laboratório de Termorregulação
e Inflamação Sistêmica (FeverLab) do St. Joseph’s Hospital and Medical Center,
de Phoenix (Estados Unidos).
“Estamos propondo um modelo em que não se observa
apenas o sistema imune na estratégia de host defense [defesa do
hospedeiro], mas também aspectos da fisiologia humana. Está claro que temos
duas estratégias de defesa e que precisamos olhar os sistemas imune e
fisiológico de forma integrada ao analisar os processos de infecção”, disse
Steiner à Agência FAPESP.
Evolução de conceitos
Nos anos 1970, pesquisas da área da fisiologia
desenvolveram a Teoria da Febre, que apontava a elevação da temperatura
corporal como um fator essencial da estratégia de defesa do hospedeiro.
“Passamos a enxergar a febre não mais como parte da doença, mas como componente
da defesa”, explicou Steiner.
Já nas duas últimas décadas, estudos com ratos
apontaram que, quando a infecção se tornava mais grave, os hospedeiros
desenvolviam hipotermia em vez de febre. “Observamos esse mesmo tipo de
ocorrência em pacientes com sepse internados em UTIs, por exemplo”, disse.
Inicialmente, a hipotermia era vista como um
processo de desregulação: o organismo estaria morrendo e, com os sistemas
falhando, já não conseguia manter a temperatura corporal. Apenas na década de
1990 os cientistas conseguiram analisar o perfil metabólico e termorregulatório
durante quadros de hipotermia para levantar a hipótese de que o fenômeno não
era causado por desregulação e sim um comportamento proposital do organismo, um
mecanismo controlado de defesa.
No início dos anos 2000, Steiner fez experimentos
com ratos para estudar a preferência térmica, ou seja, para entender se o
organismo dos animais procurava de forma ativa o frio ou o calor e em quais
circunstâncias o fazia, tentando, então, entender melhor a hipotermia. “Nessa
pesquisa percebemos que, em quadros menos graves, os animais estudados
procuravam um ambiente quente e desenvolviam febre. Porém, com o agravamento do
quadro inflamatório, passavam a procurar um ambiente mais frio, onde seria mais
fácil desenvolver hipotermia”, contou.
A procura por um ambiente frio indica que o animal
está em processo de desenvolvimento ativo de hipotermia. Segundo Steiner, tal
fenômeno envolve centros do sistema nervoso central que coordenam uma inibição
metabólica que, em ambiente mais frio, leva a uma redução regulada da
temperatura corporal.
A febre, por outro lado, exige um gasto
considerável de energia para manter a temperatura alta. Além disso, pode
exacerbar o estresse oxidativo – desequilíbrio entre a geração de compostos
oxidantes e a atuação de sistemas de defesa antioxidante –, que atrapalha a
homeostase dos tecidos.
“Levantou-se a hipótese de que a hipotermia ocorre
quando os custos metabólicos da febre excedem os benefícios: o desafio imune é
muito forte ou há debilidade física. A resposta hipotérmica regulada daria
suporte para um quadro de tolerância imunológica, no qual o organismo passa a
conviver com o patógeno 'desligando' sistemas não vitais e defendendo
aqueles sem os quais não consegue sobreviver”, explicou.
Nos experimentos realizados entre 2008 e 2012,
Steiner detectou menor mortandade em animais que recorriam à estratégia da
hipotermia frente a infecções bacterianas graves do que naqueles em que a
hipotermia era bloqueada por intervenções laboratoriais. “Com isso, constatamos
que na fisiologia animal a hipotermia tinha um papel benéfico”, disse.
Há cerca de uma década, também começou a mudar o
paradigma da área de imunologia de que o sistema imune tem como objetivo
principal matar o patógeno. Pesquisadores da área descobriram que alguns
animais desenvolvem outra estratégia: ativam o mecanismo de defesa que permite
a convivência temporária com o invasor.
Conhecimento combinado
No artigo publicado na Trends in
Endocrinology and Metabolism, Steiner e Romanovsky defendem que o sistema
de defesa do organismo humano seja abordado a partir da perspectiva das dicotomias
febre/hipotermia – mecanismos estudados pela fisiologia – e resistência/
tolerância – pesquisados pela imunologia. Ou seja, sugerem que se combine os
dois campos do conhecimento e se olhe para além do sistema imune ao lidar com
infecções.
“Trata-se de um sistema dinâmico, em que o
organismo transita entre uma e outra estratégia. Os sistemas imune e
fisiológico não adotam apenas uma linha de defesa e se mantêm nela,
principalmente em quadros graves como a sepse”, disse Steiner.
Além dos estudos em ratos, Steiner e sua equipe
acompanharam um grupo de 50 pacientes sépticos tratados no Hospital
Universitário (HU) da USP. “Procuramos um subgrupo de pacientes que tinha
apresentado hipotermia semelhante à associada ao mecanismo da tolerância, cujas
características são ser transitória e autolimitante. Para nossa surpresa, 97%
dos 50 pacientes estudados se encaixaram nesse perfil”, contou. Segundo o
pesquisador, nesses casos, a temperatura corporal cai de 2º C a 2,5 º C no
máximo.
O quadro desses pacientes transitou naturalmente
entre os estados de resistência com febre e de hipotermia, possivelmente
associada a tolerância. As variações ocorriam como resposta do organismo, sem
indução por uso de medicamentos ou promoção de técnica de resfriamento e
aquecimento dos pacientes.
Segundo o pesquisador, a maior evidência de que o
processo não é uma simples desregulação do corpo é que, dos 25 casos em que
houve óbito, a maioria apresentou febre nas 12 horas que antecederam a morte.
“Se a hipotermia fosse resultado de disfunção, de falência de órgãos, seria
nessas 12 horas pré-morte que observaríamos mais hipotermia”, avaliou.
Os estudos realizados por Steiner receberam apoio
da FAPESP por meio de um Auxílio à Pesquisa – Jovens
Pesquisadores; um Auxílio à Pesquisa – Regular;
e um Auxílio à Pesquisa Temático.
Próximos passos
A implicação mais imediata dos resultados obtidos
até o momento está em promover uma reavaliação da forma de lidar com a sepse.
“Hoje em dia, as infecções graves são vistas de forma unidimensional: o sistema
imune está lá para matar o patógeno e, se não o faz ou o faz exacerbadamente,
causa problemas ao paciente. Com base nos novos achados, podemos pensar em
possíveis terapias e em uma linha de tratamento mais personalizada, em que se
analisa se o paciente poderá se beneficiar mais de uma estratégia de
febre/resistência ou de hipotermia/tolerância”, afirmou.
Atualmente, o grupo de Steiner busca testar a
aplicação da teoria geral proposta no artigo em situações específicas, como
infecções por fungos, vírus e bactérias. Outra linha de pesquisa é avaliar a
influência da obesidade nas estratégias de defesa contra infecções.
O artigo Energy Trade-offs in Host Defense:
Immunology Meets Physiology pode ser lido em https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1043276019301791.
Janaína Simões
Agência FAPESP
http://agencia.fapesp.br/combinacao-de-febre-e-hipotermia-pode-ajudar-a-combater-a-sepse/32430/
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