A noção de identidade, como sabido, baseia-se na ideia de distinção. Para afirmar determinada identidade, é necessário apontar algo que distinga determinado elemento humano de outro. Nesse sentido, tal operação pode ser feita entre indivíduos ou entre grupos. É o que ocorre na película referida, que explora o tema do duplo a partir dos espectros de uma família.
A identidade individual pode ser observada tanto sob o ponto de vista interno quanto externo. No primeiro caso, permite o exame da dicotomia bem/mal, presente em qualquer ser humano, como demonstrado na obra. Os espectros, que representam o aspecto negativo das pessoas, podem ser entendidos como a parte não assumida socialmente de qualquer personalidade. Já o aspecto externo identitário pode ser pensado sob o prisma que induz à diferenciação dos indivíduos na chave eu/outro. Ainda que fundamental, tal fato, levado ao extremo no campo político, pode ensejar comportamento discriminatório, vislumbrando na alteridade um fator necessariamente negativo (o mesmo que fundamentou a célebre afirmação de que "o inferno são os outros"). No filme, as sombras vivem no subterrâneo, experimentando situações negativas, diversamente do duplo que vive na superfície.
A identidade coletiva, por sua vez, quando equivocadamente compreendida, pode ocasionar efeitos deletérios ao convívio social. De certo modo, pode induzir à perda do senso de coletividade mais ampla, pois cada grupo que compõe uma comunidade enxerga no fator que o une algo mais relevante que o elemento que o vincula ao restante da comunidade. É o que ocorre na relação entre as chamadas minorias com o restante da sociedade. Como resposta às dores sofridas, o grupo contrapõe-se ao todo, fazendo com que seja perdida a visão da coletividade. Em termos políticos, percebe-se tal situação pela visão fragmentária em boa parte das medidas propostas ou adotadas pelo poder público. A rebelião dos espectros observada em "Nós" materializa o rancor da parcela da sociedade que não desfruta de condições dignas de existência, produto da desigualdade injustificada e criador de visão sectária de mundo.
A desconsideração do outro, ou seja, da parte complementar de cada indivíduo ou da comunidade, pode inviabilizar, respectivamente, a evolução pessoal e social, situação agravada pela polarização política extremada que tem dominado o Brasil nos últimos anos. Se isso não for considerado, o indivíduo corre o risco de transformar-se em sua própria sombra e os integrantes da sociedade, assim como os espectros do filme, tendem a ser incapazes de comunicação e de qualquer forma de diálogo, emitindo meros sons guturais. Em tal panorama, infelizmente, a violência individual e coletiva surge como consectário previsível e o versículo bíblico citado na obra de Jordan Peele (Jeremias 11:11) toma a forma de uma profecia facilmente realizável.
Elton Duarte Batalha - professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, advogado e doutor em Direito pela USP.
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