segunda-feira, 26 de março de 2018

Pesquisa inédita no Brasil mostra quais as dores dos moradores em situação de rua


Para 82,6% a dor é rotina. Dados mostram ainda que 73,8% das queixas são referentes a dor em músculos, tendões, ligamentos, articulações e ossos.



Há mais de 30 anos morando na rua, José Roberto da Silva diz que sente dores todos os dias (Foto: Cristiane Bomfim | Divulgação Einstein)

Pés inchados e com feridas. Mãos calejadas. Dor constante nas costas e braços. Morador das ruas da cidade de São Paulo há mais de 30 anos, José Roberto da Silva Cirilo, de 47 anos, percorre diariamente a região central puxando uma carroça. Dorme, na maioria das vezes, no frio das calçadas e sob marquises que nem sempre o protegem do sereno. Estudo inédito realizado pela enfermeira Ariane Graças de Campos e coordenado pela pesquisadora do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (IIEP), Eliseth Ribeiro Leão, mostra que a dor física sentida constantemente por José Roberto é também rotina na vida de 82,6% dos 69 moradores de rua entrevistados para o trabalho realizado na capital paulista, sendo que as musculoesqueléticas representam 73,8% das queixas – elas  ocorrem em músculos, tendões, ligamentos, articulações e ossos.

Levantamento divulgado em 2015 pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) a pedido da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social mostrou naquele ano 15.905 pessoas vivendo em situação de rua na capital. No país, o número estimado no mesmo ano era de 101.854. A pesquisa “A dor do morador de rua” mostra que, em média, os moradores de rua convivem por 8 anos com a dor e que a percepção é menor para quem está há mais tempo nessa condição. Desde que foi expulso de casa pela ex-mulher há três meses, o vendedor Antônio Onofre da Silva Júnior, de 36 anos, perambula no entorno da Praça da Sé. Algumas vezes consegue vaga em algum dos albergues da cidade e diz sentir muita dor pelo corpo. “Ainda não me acostumei com essa vida de dormir no chão duro e sem conforto. Acordo arrebentado, mas dizem que depois a gente esquece”, contou. 

Mais alarmantes são as informações de que 69% dos entrevistados sentem dor todos os dias e que, em grande parte dos casos, a duração é de horas (para 39,1%) ou dias (40,6%) seguidos. “A dor faz parte do viver dessas pessoas. Eles convivem por tanto tempo com ela que se acostumam, se acomodam e na maioria das vezes não procuram ajuda”, explica Ariane que, entre 2009 e 2017, trabalhou no atendimento dessa população.  Esse comportamento é o mesmo para graus leves e intensos, sendo esse o grau mais apontado pelos moradores ouvidos no estudo:  61,2%.

A dor interfere em todas as atividades do dia a dia desses indivíduos, especialmente no sono. Para 87,2%, a condição de rua prejudica a qualidade e a duração do sono. Isso é atribuído ao fato de a maioria dormir no chão, estar exposta ao frio e vulnerável a fatores como violência. Na sequência, os itens mais mencionados foram humor (83,8%) e trabalho (79,3%).

Intensidade da dor
Atividade diária
Intensa
Moderada
Leve
Sono
87,20%
7,3%
5,50%
Humor
83,80%
13,0%
3,20%
Habilidade de caminhar
81,80%
11,0%
7,20%
Trabalho
79,30%
17,2%
3,50%
Apreciar a vida
79,20%
11,3%
9,50%
Atividades gerais
70,50%
23,0%
6,50%
Relações pessoais
67,20%
16,4%
16,40%

O carroceiro José Roberto diz que seu corpo dói mais quando está parado, percepção de 27,5% dos entrevistados. Por isso, prefere ocupar a maior parte do dia recolhendo, em lojas e prédios, materiais que podem ser vendidos em ferros-velhos. Acorda às 7h e dorme depois da meia-noite. E quando a dor aperta, não é uma Unidade Básica de Saúde (UBS) que procura. Ele se automedica, “Uma vez um médico me receitou um remédio. Agora vou e compro direto”, conta. Diferentemente dele, grande parte dos moradores – 40% – usa medicamentos prescritos. O consumo de álcool e droga também é opção válida para 13,1% e 10%, respectivamente.

Negligência
De acordo com a pesquisadora do Einstein, Eliseth Leão, o estudo é um retrato da negligência da dor no Brasil. A dor está presente em todos os países – dos desenvolvidos até os mais pobres –, mas não estamos preparados para perguntar e identifica-la nas pessoas. Um exemplo é o fato da cartilha do Ministério da Saúde (cartilha Saúde da População em Situação de Rua, publicada em 2014) não tratar do assunto. No caso dos moradores de rua, a questão se agrava: eles não têm acesso ao tratamento, sem falar nas questões de adesão e comprometimento que para eles é muito mais complicado, segundo Eliseth.


Dor emocional
No início do trabalho, a ideia de Ariane não era investigar a dor emocional, mas o tema era recorrente durante as entrevistas. O resultado demonstrou que 78,3% dos entrevistados convivem com algum tipo de dor emocional. “A maioria por conta da morte da mãe. Esse é um fator que desorganiza o sujeito, que o leva para a bebida ou para a rua”, explica Ariane. “Nunca tinha me dado conta do quanto a falta da presença materna pode desestruturar uma pessoa”, continua.

A pesquisa
O estudo considerou 69 pessoas que moram nas ruas do centro da capital paulista – região do Parque D. Pedro II, Rua 25 de Março, Zona Cerealista e Avenida do Estado. O universo inicial era maior, mas foram excluídos indivíduos com sinais de intoxicação por álcool e drogas, discurso delirante, menores de 18 anos e os que viviam há menos de 12 meses na rua. 


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