Trabalho
é meio de vida e não meio de morte. Essa afirmação confronta a realidade de
milhões de profissionais brasileiros que são obrigados a enfrentar jornadas
extenuantes de trabalho. E uma das características mais marcantes os últimos
tempos é a conexão 24 horas com o trabalho. Celulares, tablets, aplicativos,
e-mails, entre outras ferramentas e recursos provenientes das novas tecnologias
transformou os trabalhadores em verdadeiros reféns.
A
cultura profissional brasileira está prejudicando a saúde do trabalhador em
todos os aspectos: físico, emocional e psíquico. As empresas criaram uma rotina
da qual partem d a premissa que “trabalhador bom é aquele que fica online”.
Será?
Lógico,
que emergências, plantões e o gerenciamento de uma crise podem fazer que o
empregado está à disposição da empresa por algumas horas a mais do que a da sua
jornada habitual. Entretanto, isso deve ser uma exceção e não a regra.
Atualmente,
o trabalhador que não fica na empresa ou a disposição dela por 10, 12, 14 horas
passa a ser discriminado. Os seus chefes e mesmo colegas de profissão o fazem
parecer um “peixe fora d’água” por trabalhar as horas estabelecidas em
contrato.
É
necessário desconectar do trabalho, ter uma vida social, cuidar da família,
brincar com seus filhos, ter momentos de lazer, tomar um chopp com os amigos,
sair para jantar com a esposa ou frequentar uma academia. É essencial para
conseguir descarregar os problemas, renovar as ideias e “as baterias” para
outro dia de trabalho. A conexão 24 horas cria e agrava problemas de saúde,
sejam eles físicos ou psicológicos.
Vale
citar um exemplo de um caso de um CFO de uma grande empresa que só pode tirar e
gozar suas férias fora do país, após contratar um pacote de dados que
possibilitasse que ele respondesse e-mails e mensagens pelo celular. Em um dos
dias de seu descanso, o executivo respondeu mais de 60 e-mails, ou seja,
trabalhou como se estivesse em seu escritório e não pode desfrutar da companhia
da esposa e dos filhos. Isso é saudável? É realmente necessário a empresa
privar seus funcionários das férias? Criar uma pressão psicológica que não o
deixa relaxado para curtir momentos preciosos com sua família?
Esse
CFO, por exemplo, toma remédio para conseguir sobreviver a rotina desgastante
do trabalho. Alguns números recentes são reflexo desse atentado contra a saúde
do trabalhador. Os casos de transtornos psiquiátricos e doenças mentais no
ambiente de trabalho estão crescendo no Brasil.
As
dificuldades geradas no meio ambiente do trabalho provocam uma série de
problemas como estresse, ansiedade, transtornos bipolares, síndrome de Burnout
– caracterizada por estresse profissional, exaustão emocional e tensão
exorbitante gerada pelo excesso de trabalho – esquizofrenia e transtornos
mentais relacionados ao consumo de álcool e cocaína, entre outros males. Em
2016, foram registrados pela Previdência Social mais de 199 mil casos de
pessoas que se ausentaram das empresas públicas e privadas por sofrerem dessas
enfermidades. Esse número supera o total registrado em 2015, que foi de 170,8
mil casos de afastamentos.
Segundo
a Previdência Social, forma registradas em 2016 o afastamento de 75,3 mil
trabalhadores em razão de quadros depressivos, com direito a recebimento de
auxílio-doença, o que representa 37,8% de todas as licenças médicas motivadas
por transtornos mentais e comportamentais no mesmo ano. A Organização Mundial
de Saúde (OMS) revela que até 2020 a depressão será a doença mais incapacitante
do mundo. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) estima que entre 20% e
25% da população tiveram, têm ou terão um quadro de depressão em algum momento
da vida. E, sem dúvida, essa conexão de 24 horas com o trabalho levará ao
crescimento desses índices e estimativas.
Recentemente,
foi aprovada na França uma lei para desconexão do trabalho. O governo francês
resolveu estabelecer uma fronteira entre a vida pessoal e profissional para
evitar, assim, novos casos de doenças relacionadas ao trabalho e vinculadas
pelas novas tecnologias. E para enfrentar o fenômeno, o direito à desconexão
foi publicado no código do trabalho francês. A nova medida prevê que toda
empresa com mais de 50 funcionários tenha de abrir negociações entre as partes
para chegar a um acordo conforme às necessidades de ambas as partes. Caso não
se consiga chegar conjuntamente a regras que garantam o direito de se desconectar,
o empregador terá de redigir, ele mesmo, uma regulamentação sobre a questão.
A
lei francesa é importante para refletirmos sobre o uso das novas tecnologias
nas relações trabalhista e sobre a saúde do trabalhador. A relação deve ser
saudável para as duas partes. Isso não exclui a possibilidade do chefe enviar
um e-mail ou uma mensagem fora do horário habitual de trabalho, mas possibilita
que o funcionário não se sinta culpado por não responder de imediatos essas
demandas.
Aqui
no Brasil, a Justiça do Trabalho enfrenta esses casos de extensas jornadas e da
conexão abusiva dos funcionários aplicando em suas decisões o dano existencial.
Criado pela jurisprudência, ou seja, pelo grande número de casos decididos por
uma mesma corrente no Judiciário trabalhista, o dano existencial combate as
jornadas extenuantes e a necessidade da conexão e disponibilidade constante com
a empresa e com o patrão.
O
dano existencial é uma espécie de indenização decorrente do impedimento que o
trabalhador sofre em desfrutar sua vida pessoal. O que afeta de forma negativa
e perigosa em sua qualidade de vida. É uma ferramenta jurídica para impedir a
frustação dos projetos pessoais e as relações sociais dos trabalhadores
provocada por condutas ilícitas das empresas.
E
as condutas são ilícitas porque, devido a uma série de flexibilizações,
inclusiva as aprovadas na reforma trabalhista brasileira, atentam contra
princípios constitucionais. O trabalho tem como um dos seus direitos
fundamentais a saúde, que está diretamente ligada ao respeito à limitação da
jornada, a dignidade humana, ao valor social do trabalho e a função social da
empresa. São direitos constitucionais, cada vez mais desrespeitados.
O
trabalhado tem direito à desconexão. E a essa recente reforma sequer tocou no
tema. Pelo contrário, flexibilizou direitos de forma inconstitucional e
certamente criará uma nova geração de trabalhadores doentes.
Ricardo Pereira de Freitas Guimarães - Doutor e
Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), professor de Direito e Processo do Trabalho da pós-graduação da
PUC-SP e sócio fundador do escritório Freitas Guimarães Advogados Associados.
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