Decidimos fazer, a quatro mãos, um breve estudo
sobre a reforma previdenciária (PEC 287).
Só o estamos fazendo pela estranheza que nos tem
causado a intensidade da discussão sinalizando um cataclismo iminente e,
particularmente, o empenho governamental, gastando mundos e fundos em
publicidade, a favor da reforma, além da completa simpatia pela reforma da
grande mídia em geral, o que é minimamente digno de suspeita.
Claro que, inundada de anúncios públicos pagantes,
a mídia não se levantaria. Nem os mais extremados. Os economistas, escutados
pela própria grande mídia, sempre e curiosamente os ligados ao setor
financeiro, apoiando e afirmando verdades de que quem não apoia é néscio. A
reforma seria a demonstração de que o país está caminhando para o futuro com
responsabilidade! O ministro, banqueiro, visitando bancada por bancada do
Congresso Nacional...
Não existe coincidência! É articulação mesmo! De
pronto, existirá um grande ganhador com a reforma e não é o erário: serão os
planos de aposentadoria privada. Em verdade, estes seriam os grandes e talvez
únicos ganhadores. Tal qual em outros setores onde o Estado não presta seus
serviços a contento, obrigando boa parte da população a pagar para ter acesso a
eles (como saúde, educação, segurança etc.), impedir que as pessoas se
aposentem, pela via pública, em tempo de fruir da aposentadoria, seguramente
induzirá as pessoas a contratarem planos privados. Isso já acontece, como
dissemos, na saúde, onde as pessoas contratam planos de saúde porque sabem que
não terão tratamento na rede pública. Este é apenas um exemplo.
E, pensando apenas nos conceitos e nas teses do
liberalismo econômico, se o setor privado tem interesse em assumir a um
determinado negócio ou mercado é, certamente, por que este negócio é lucrativo.
Todavia, vamos à análise da reforma.
Primeiramente, queremos deixar claro: somos a favor
de uma reforma, mas não desta. Reforma não pode significar destruição. Deve
abarcar a ideia de readequação, remodelação para o uso.
Como primeiro argumento, contra a reforma proposta,
vamos explicar o porquê de nossa contraposição à afirmação de que a previdência
está quebrada.
Vários têm sido os artigos publicados por ferrenhos
defensores da reforma e, meramente como ilustração, nos referiremos ao artigo
publicado no jornal Valor Econômico, pelo professor Fábio Giambiagi, que
constrói seu raciocínio, para efeito de simplificação, como ele mesmo afirma,
considerando que o Governo Federal inclui duas entidades, o Tesouro Nacional e
o INSS.
Prosseguindo em seu argumento, o Governo Federal
tem duas receitas, impostos e contribuições (exceto a previdenciária), já o
INSS tem apenas uma receita, a contribuição previdenciária. De outra parte, o
Governo Federal tem um só gasto, as despesas gerais, enquanto o INSS tem dois
tipos de gastos: os benefícios urbanos e os rurais.
Ainda segundo o professor Fábio Giambiagi, o
“batalhão antirreformista” faz uma “manipulação algébrica”, pretendendo
deslocar as receitas das contribuições, hoje receitas do Governo Federal, para
o INSS e repassar os benefícios rurais, hoje despesas do INSS, para o Tesouro
Nacional.
A conclusão da tese é que, ao final, o resultado é
o mesmo, pois a soma de todas as receitas, com a dedução de todas as despesas,
quer sejam do Tesouro Nacional ou do INSS, determinam o resultado do Governo
Federal, que não seria alterado pelo simples deslocamento de receitas e
despesas de uma para outra entidade, por ele definidas como o Tesouro Nacional
e o INSS.
Onde está o erro?
O erro é conceitual. Os impostos são tributos não
vinculados, por definição legal. O que isto quer dizer? Na definição do CTN,
significa que imposto é o tributo cuja obrigação tem
por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal
específica, relativa ao contribuinte, ou seja, não há, na imposição do imposto,
contrapartida determinada do Estado ao contribuinte.
Já as contribuições, previdenciárias ou
não, são tributos vinculados, o que significa dizer que são tributos devidos em
decorrência de uma prestação estatal em proveito direto do contribuinte.
Acertado o conceito, a aplicação
contábil deve, logicamente, ser adequada ao conceito.
Em verdade, a União ao arrecadar a
contribuição previdenciária e as demais contribuições sociais, nas modalidades
COFINS, PIS/PASEP, CSLL, deve verter todos esses valores aos cofres da
seguridade social, composta, de acordo à definição constitucional, por assistência,
saúde e previdência.
Não pode a União usar qualquer valor
dessas fontes para outro tipo de gasto que não seja o da seguridade social.
Tal diferenciação não é meramente contábil, mas uma
definição basilar, incontornável, e que se sobrepõe a qualquer exercício
matemático.
A partir deste princípio legal, o déficit ou
superávit, deve ser mensurado pelas receitas e despesas da seguridade social,
isoladamente, cabendo o custeio das despesas gerais do Governo Federal, única e
exclusivamente, à arrecadação de impostos.
A única “manipulação algébrica”, utilizando a
terminologia aplicada pelos autores desta argumentação, entre eles o próprio
Estado, ocorre em função do instrumento da Desvinculação das Receitas da União
(DRU), artifício implementado em 1994, no âmbito do Plano Real, e que vem sendo
prorrogado, desde então, mais recentemente em agosto de 2016, quando além de
prorrogar a DRU até 2023, foi aumentada a desvinculação das receitas de 20%
para 30%, e estendidas às desvinculações a diversas receitas estaduais e
municipais.
Este artifício, sob a forma de Emenda
Constitucional, permite ao Governo Federal destinar, para onde quiser, o
equivalente a 30% do valor arrecadado pelas contribuições sociais, as já
referidas contribuições (exceto a previdenciária), que deveriam ser aplicadas
em sua totalidade para a Seguridade Social.
Vamos aos dados concretos e utilizaremos, sempre
para efeito de comparação, os valores a preços correntes obtidos de fontes
oficiais*.
No ano de 2016, segundo os dados do Governo
Federal, as receitas primárias do orçamento da seguridade social totalizaram R$
613.179,3 milhões, enquanto as despesas primárias atingiram R$ 871.842,5
milhões, gerando um déficit de R$ 258.663,2 milhões.
Esquecem-se dos efeitos da DRU na redução das
receitas primárias da previdência.
A somatória da arrecadação das receitas federais,
em 2016, do COFINS, PIS/PASEP e CPSS, segundo dados da Receita Federal,
totalizou R$ 326.607 milhões, enquanto os dados do orçamento da seguridade
social demonstram ingressos de, apenas, R$ 211.701 milhões, ficando claramente
explicitado o desvio de R$ 114.906 milhões, de valores constitucionalmente
vinculados para o Tesouro Nacional, através do mecanismo da DRU, direcionando
estes recursos para pagamento de gastos gerais do Governo Federal.
Fica, desta forma, comprovado que 44% do chamado
déficit do orçamento da seguridade social, em 2016, é gerado exclusivamente
pela aplicação do artifício da DRU.
O próprio Executivo Nacional não oculta que parte
do valor arrecadado em função da DRU será destinado, anualmente, à geração do
superávit primário, ou seja, como reserva de recursos para o pagamento da
dívida pública, pois uma de suas funções é “contribuir para a geração de
superávit nas contas do governo, com o objetivo de interromper a trajetória
recente de crescimento da dívida pública”.
A matemática não comporta aventuras.
O fato é que a DRU retira receitas da seguridade
social e contribui, significativamente, para sua inviabilização.
Mas não é só, pois revisando, também, a arrecadação
do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), em 2016, encontramos outro
significativo fator de desvio de ingressos no orçamento da seguridade social,
que são as denominadas renuncias previdenciárias, que totalizaram o valor de R$
43.420,6 milhões, ou seja, quase 17% do chamado déficit do orçamento da
seguridade social.
E, em complemento, em nossa opinião, ancorada na
Constituição Federal, nos obrigamos a defender que antes de aprovar a tal
reforma que, como apresentada, prejudica diretamente a população, deve ser
feita uma profunda análise, uma auditoria completa, nas contas públicas da
seguridade social, começando pela apuração dos valores não arrecadados gerados
pela inadimplência de muitos contribuintes, estimada em mais de R$ 400 bilhões,
separando o joio do trigo, descartando os valores podres, portanto incobráveis,
e cobrando duramente aos demais devedores.
Em suma, é fundamental que seja aberta a “caixa
preta” da seguridade social, em nome da transparência necessária dos gastos
públicos, onde fique claro quais são as receitas e os gastos totais reais da
seguridade social, constatando verdadeiramente os
resultados, sejam eles superavitários ou deficitários, em sua dimensão real.
E, claro, o que aparenta ser mais
difícil, que é proceder a análise das despesas gerais do Governo Federal,
inclusive as decorrentes das sempre ascendentes despesas com o pagamento da
dívida pública, constatando o verdadeiro rombo, sem criatividade matemática ou
ocultação, camuflando a informação.
Só a partir destas informações reais
poder-se-á proceder aos cálculos atuariais previdenciários adequados, sem a
“desidratação” de recursos que ocorre pelos vários desvios supramencionados
que, uma vez corrigidos, permitirão uma análise mais isenta e precisa da
amplitude da reforma de que o Brasil necessita, sem a transferência, a toque de
caixa, dos ônus da conta, diretamente aos cidadãos.
Assim, o povo, informado corretamente,
sem propaganda e ocultação de informação, poderá fazer a escolha de a quais
prioridades atender, através de seus representantes no Congresso ou, por que
não, de forma direta?
Marcus Vinicius Ramos Gonçalves - Presidente da Comissão de Estudos de Comunicações da
OAB-SP, professor da FGV-SP e sócio do escritório Bertolucci & Ramos
Gonçalves Advogados.
José Francisco F. Marcondes Neto - economista formado pela FEA - USP e empresário.
* Fontes:
1- Reforma da Previdência (Fev-2017) - Apresentação
do Secretário da Previdência do Ministério da Fazenda, Marcelo Caetano, ao
Congresso Nacional (8 Mar 2017)
2- Análise da Arrecadação das Receitas Federais
(Dez/2016) - Secretaria da Receita Federal do Brasil - Centro de Estudos
Tributários e Aduaneiros (a preços correntes)
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