Antigamente pouco se
questionava sobre as consequências de determinadas ações intituladas de
“brincadeiras” que tinham como característica alguma demonstração de
preconceito, ofensa ou degradação envolvendo alguém ou algum grupo. Termos como
o Bullying não estavam na pauta diária e os limites para o que era considerado
humor estavam fracamente conceituados. Simplesmente não se pensava nas
consequências de tratar certos assuntos e grupos sociais como inferiores
através de uma “piada”. Não se enxergava a opressão que roubava a dignidade. A
postura moral era ignorada, alimentando, até inconscientemente, comportamentos nocivos.
Felizmente, vivemos em
tempos onde o olhar em cima dessas situações se tornou crítico, mais
esclarecido e mais atento aos erros passados. Muitos ainda dizem “o mundo está
ficando sem graça” ou “tudo é polêmica”, mas a questão é que em diversos níveis
é preciso que haja reflexão real, e a maioria das pessoas já começa a se
dar conta disso trazendo à pauta pontos que antes eram considerados
“inofensivos”, mas que perpetuavam estereótipos, preconceitos e até mesmo
crimes.
Com os tempos mudando, fazer
uma piada com o antissemitismo, ou atrelada ao Nazismo em algum nível, pode
parecer algo impensável, já que em relação a esse assunto há quase uma
unanimidade quanto a absurdo que isso seria. No entanto, no começo de 2017,
Feliz Kjellberg, o Pewdiepie, que é o Youtuber mais popular do mundo, com 50
milhões de inscritos em seu canal, mostrou em um de seus vídeos, dois indianos
segurando um cartaz onde estava escrito “Morte à todos os judeus” e tratou a
situação como uma piada. Como consequência, ele perdeu seu patrocínio com a
Disney e com o Youtube, além é claro de milhares de inscritos.
Mas como se chegou ao
absurdo de até mesmo isso ser considerado “piada” pelo Youtuber? Simples. A
falta de ética na cultura vem tratando como inofensivas diversas posturas onde
a dignidade é deixada de lado. É apenas uma questão de encadeamento do
pensamento. Acostumados a abandonar a dignidade de um grupo para manter uma
“piada”, aos poucos se chega a fazer o mais absurdo e transformar o ódio aos
judeus em algo aceitável novamente. Não estou dizendo que por causa disso vai
acontecer um novo Holocausto. Apenas que o reforço em uma cultura de
preconceito, evoluí, se aprofunda, e por fim faz vítimas. E é isso que já não é
mais permitido hoje em dia. Não vivemos mais em uma época onde oprimir um
grupo é algo que pode ser considerado “engraçado”. No pseudo humor do Youtuber,
aquilo era algo divertido. No mundo real, foi preconceito e apologia a uma das
maiores atrocidades já realizadas pela humanidade.
O debate correu solto pelas
redes sociais e mídias, já que vivemos tempos de discussões sobre limites entre
crítica, humor e perpetração de preconceito ou práticas nocivas. Hoje, já não é
aceitável fazer “piadas” com negros, homossexuais, mulheres, por exemplo. A
sociedade chegou a um ponto de consciência moral que entende como isso é
prejudicial, como é ofensivo e venenoso, não só aos grupos alvo, mas a todos
como seres humanos. Não se pode permitir que atitudes como essa fiquem impunes,
porque o pensamento da sociedade está mudando, se alinhando à moral positiva.
O espaço para esse tipo de
atitude já não existe e, cada vez mais, o debate saudável encontra limites
construtivos para perpetuar a dignidade humana e o respeito. Como consequência,
até as empresas estão mais cautelosas com relação a quem associam seu nome,
fazendo com que não importasse para a Disney os milhões de inscritos do
Pewdiepie e sim a imagem que ela estaria passando a seus consumidores se
apoiasse essa postura. A ética ganha novo lugar nas relações empresariais porque
ela já vem ganhando lugar de destaque nas relações sociais, culturais e, por
fim, humanas.
Na história da humanidade
sempre houve o opressor e o oprimido. O universo animal sempre se apoiou na lei
do mais forte, porém, para os seres humanos isso não é válido, pois não somos
apenas dotados de dignidade, mas reclamantes da mesma e seres de
raciocínio. A lei busca nos proteger, mas é na moral que somos defendidos dos
erros passados e presentes que estão enraizados como cultura. O esclarecimento
se conquista aos poucos e é podando atitudes como essa que se evita novos
“Holocaustos”. A maioria das pessoas não sabe, mas a Eugenia, que inspirou as
atitudes de Hitler, tem seu pai em Francis Galton, um inglês, e sua prática
como um ato de “limpeza genética”, com direito a castração química, começou nos
Estados Unidos pré Segunda Guerra.
O que se tornou um massacre
partiu de ideias praticadas por grupos que mais tarde foram aclamados como
heróis. Isso levanta a questão sobre onde começam ações hediondas e o cuidado que
se deve ter na hora de manter e conquistar respeito e dignidade para o ser
humano. Atitudes de violência à dignidade devem ser combatidas com
esclarecimento, com ética, com mudança moral. A postura da Disney é louvável no
sentido de transformar em empresarial as consequências da irresponsabilidade
moral. Grandes ações de crueldade são evitadas com posturas tolerantes diárias.
Curiosamente, foi no pós
Segunda Guerra, com o Código de Nurembergue, que o mundo começou a mudar. A
passagem da era do consumo para a da informação, nos anos 1990, também foi um
forte fator. Com isso passou-se a refletir em cima do poder que a impunidade
dava aos intolerantes e isso nos levou a uma evolução histórica que está
culminando nessa primeira metade do século XXI.
Quando a mudança é legal,
apenas, isso não se reflete no comportamento real da sociedade, mas quando o
esclarecimento é moral e, por sua vez, gera ações éticas, se repensa o que
aconteceu. As ideias de eugenia foram quase extintas. O acesso a informação
gerou conhecimento e debate. Tudo como reflexo da compreensão de onde aquela
postura levou a humanidade. Graças ao acesso à informação, trazido pela
internet, o oprimido ganhou voz, se tornou protagonista e inclusive pode dizer
ao opressor que atitudes pequenas como uma “piada” reforçavam culturas de perda
de dignidade.
Hoje, se entende a
necessidade de considerar o ser humano como fim último do esclarecimento como
ferramenta de crescimento. O século XXI é detentor de uma sociedade intolerante
à intolerância e esse é um dos primeiros passos para criar gerações mais
conscientes, mais cheias de ética nas posturas. Está na informação da ética, a
raiz motora de todo movimento igualitário e discussão que leva nossa sociedade
a uma era de dignidade.
Samuel
Sabino - fundador da Éticas Consultoria, Filósofo, Mestre
em Bioética, e professor universitário.
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