Obviamente
é força de expressão dizer que a imprensa é o "quarto poder". Mas,
sem nenhuma dúvida, a boa imprensa traz à lume fatos que podem movimentar os
poderes institucionais da República. É o que ocorre com o início de uma série
reportagens de O Estado de S. Paulo sobre as consequências humanas e sociais da
queda da barragem da Samarco, em Mariana-MG.
O bairro de
Bento Rodrigues foi destroçado e, com ele, seus moradores. Sofrem todos e,
principalmente, as crianças. São refugiados tácitos no coração histórico do
Brasil. O primeiro noticiário impressiona e repugna.
As crianças
são "pés de lama". Os cartões de débito fornecidos pela Samarco são
assemelhados a um cheque duvidoso. Boa parte dos moradores são
"aproveitadores", "caçadores de indenização". Sempre que
ocorrem tragédias dessa natureza, os defensores do responsável se apressam em
dizer, nas contestações judiciais, que há extravagâncias dos miseráveis que encontraram
seu "Eldorado". Ralam-se as chagas. É o que ocorre com os
moradores do Bairro, "como se eles fossem os responsáveis pela
tragédia", no dizer do jornalista Bruno Ribeiro.
Ocorrida em
5 de novembro de 2015, lá se vai um ano. Para variar, os procedimentos
judiciais estão verdes. Seguindo-se o ramerrão de nosso judiciário entupido,
espera de duas décadas não é previsão exagerada.
Enquanto
isso, não fosse o sofrimento, os moradores são discriminados pelo restante da
população. "O cara tinha uma vaca, agora fala para a Samarco que eram
cem". "O rapaz disse que tinha um cofre cheio de dinheiro...".
Dizem-no diretamente às vítimas. Jornal da cidade fez eco às aleivosias. Os
atingidos dizem se sentirem como os refugiados vistos na TV. Suas vidas se transformaram
em idas e voltas entre o trabalho e a moradia. Num supermercado, visto o cartão
da Samarco, lá vem "olha o povo do Bento". O problema, diz a
reportagem, recrudesce nas escolas. As crianças, no próximo ano, devem mudar
para uma escola exclusiva, dadas as provocações. Entre esses desafortunados não
se fala de "bullyng". O Promotor da cidade abriu inquérito para
investigar "o preconceito de alguns moradores de Mariana contra os
atingidos que recebem auxílio financeiro da Samarco". As ações judiciais propostas
no ano decorrido visam combater os preconceitos e obter a justa
indenização. Diz o promotor que há audiências mensais no fórum de Mariana,
para discutir ações emergenciais. "Precisamos, logo, começar a tratar das
indenizações", diz o representante do Ministério Público. Pouco, muito
pouco, para quem conhece as agruras forenses. À Samarco, como é óbvio, não se
pode negar as garantias constitucionais do devido processo legal, do
contraditório e da ampla defesa.
"Logo", pois, é ilusão.
Perícias,
em geral demoradas, serão necessárias. Provavelmente, os "pés de
lama" atingirão a maioridade com os pés enlameados. Os reflexos sobre a
saúde física e psíquica não precisam ser narrados.
Voltamos,
assim, ao fio da meada desta abordagem. As revelações da imprensa, que serão
complementadas na série especial, dão oportunidade, a primeira, no Brasil, para
o Poder Judiciário mostrar sua efetividade. E, este é o ponto principal, desde
logo, sem salto de instâncias, ao Supremo Tribunal Federal, hoje presidido por uma
Ilustre conterrânea das vítimas, Ministra Carmem Lúcia. Esta e o Tribunal,
contudo, não podem agir sem serem provocados. A instituição mais adequada a
provocar a ação do STF é a Procuradoria-Geral da República, conduzida pelo
ilustre Procurador-Geral, Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros.
É
necessária sua compreensão no sentido de que se apresenta, com muito relevo, a
hipótese de uma "arguição de descumprimento de preceito fundamental".
Os detrimentados encontram-se lesados em direito constitucional fundamental,
a dignidade da pessoa humana, contemplado no art. 1º, III, da Constituição
Federal, e seus dispositivos complementares. Agir ou não agir,
constitucionalmente, na mais alta esfera jurisdicional brasileira, o STF, eis a
questão. Óbices processuais formais são facilmente superáveis, a fim de não
impedirem um pronunciamento do STF.
Temos que o
pronunciamento é perfeitamente cabível. Na preservação de um direito
fundamental, o STF pode determinar: (a) que o processo de Mariana tenha
preferência absoluta sobre todos os demais, indiscriminadamente; (b) determinar
à Defensoria Pública que designe um número mínimo de defensores para Mariana;
(c) determinar a formação de uma equipe de peritos; (d) determinar ao Tribunal
de Justiça de MG que designe um juiz especialmente para cuidar do caso, e ao
Ministério Público mineiro mais promotores etc. Tais determinações podem ser
exaradas liminarmente pela maioria da Corte Suprema.
A Justiça
brasileira sairia de sua clássica letargia e demonstraria ao mundo que
respeitamos os direitos humanos e que somos uma nação juridicamente civilizada.
Amadeu Roberto Garrido de Paula - advogado e membro da Academia
Latino-Americana de Ciências Humanas.
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