quinta-feira, 3 de março de 2016

Estudiosa analisa ações da Lei Maria da Penha após audiências de custódia




No Recife (PE), quando a Justiça processa um acusado de cometer um crime previsto na Lei Maria da Penha, as características de agressores e agredidos são tão comuns que é possível traçar um perfil dos envolvidos. A mulher tem baixa renda e frequentou a escola por pouco tempo. O homem é, na maior parte das vezes, companheiro (ou ex) da mulher agredida, e está sendo processado por crime de ameaça. Os relacionamentos têm duração média de 10 a 30 anos e geraram filhos.
O perfil consta da pesquisa “Alternativas penais e a Lei Maria da Penha: um diálogo essencial”, divulgada pela professora de criminologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Marília Montenegro, no 2º Fórum Nacional de Alternativas Penais, evento que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promoveu semana passada em Salvador (BA).
Ao longo de 2013, a professora acompanhou os processos judiciais relacionados à Lei Maria da Penha e ouviu as mulheres que representavam o chamado polo passivo das ações penais de violência doméstica na capital pernambucana. Nos relatos que ouviu, a pesquisadora descobriu que as mulheres eram vitimizadas desde antes do ato da agressão física até muito tempo depois da prisão do agressor, tanto com violência física quanto com violência psicológica. Um dos primeiros casos que Marília Montenegro acompanhou foi o de uma mulher cujo marido morreu tragicamente após ser preso pela Lei Maria da Penha.
De acordo com a professora, a vítima da violência estava angariando fundos para pagar a fiança do companheiro, preso dias antes, quando o homem foi assassinado durante uma rebelião no presídio Aníbal Bruno, no Recife. Quando a mulher chegou ao presídio, entrou em desespero ao ver os filhos dela e a mãe do seu ex-companheiro responsabilizando-a pela morte do homem. “Quando a conheci, ela me dizia ‘eu matei ele’. Eu respondi ‘não, quem matou foi o Estado de Pernambuco’. Então imagine o peso dessa mulher que mora com a sogra, que tem seus filhos e foi buscar o corpo do seu companheiro no sistema prisional pernambucano”, afirmou a pesquisadora.
A situação de fragilidade social das mulheres fica evidenciada nos trechos de depoimentos das vítimas à polícia, conforme a pesquisadora extraiu dos termos circunstanciados aceitos pelo Ministério Público para iniciar o processo de violência doméstica nos Juizados Especiais Criminais. Sem saber ler ou escrever, muitas vítimas narram episódios de maridos bêbados que as agridem com brutalidade, em crises de ciúmes ou por não aceitar o fim da relação. Quando os casos chegam aos juizados especiais criminais, é comum as mulheres mudarem as narrativas em favor do agressor, de acordo com os relatos coletados em audiências de conciliação presenciadas pela pesquisadora e pelos seus colegas do Grupo Asa Branca de Criminologia. Em um deles, a vítima acabou por perdoar o agressor quando este concordou em se tratar do alcoolismo.

Condenações – O resultado é que, em muitos casos, os processos penais acabavam arquivados por falta de provas. Ao final dos julgamentos acompanhados na pesquisa, apenas 38% dos réus foram condenados – destes, apenas 33% tiveram de cumprir pena na prisão. Mesmo assim, apenas 15% desses condenados ao regime fechado não têm a pena privativa de liberdade convertida em uma pena restritiva de direitos (prestação de serviços à comunidade) ou suspensa condicionalmente, por um instituto chamado “sursis simples”.

Humanização – De acordo com a professora Marília Montenegro, não necessariamente as mulheres que levam seu conflito à Justiça exigem a prisão do homem que as agrediu ou ameaçou. Em muitos relatos analisados na pesquisa, as vítimas vão à Justiça para pedir uma separação, com partilha de bens e pedido de pensão alimentícia – em um deles a mulher afirmou ao promotor público que gostaria apenas de um pedido de desculpas público do seu companheiro. “A ofendida olhou para o conciliador e, sem titubear, afirmou: ‘eu só quero que ele me peça desculpas, aqui na frente do senhor Doutor e da Justiça brasileira, e que o senhor coloque isso no papel. Para mim isso basta! Depois de tudo que eu falei aqui para vocês eu já estou aliviada'. Ele teve que ouvir tudo, acho que foi a primeira vez, depois de mais de 25 anos vivendo juntos, que ele foi obrigado a ouvir tudo", relatou a pesquisadora.
Novo tratamento - Com tantas demandas diferentes da prisão, a conclusão de Marília Montenegro é que todo o sistema de Justiça precisa humanizar o tratamento dispensado a mulheres vítimas de violência doméstica, sobretudo após o advento das audiências de custódia em todo o país. “A Lei Maria da Penha tem de ser repensada a partir das audiências de custódia, que é um instrumento importantíssimo, mas precisamos da sensibilidade de magistrados, promotores e defensores públicos”, afirmou a estudiosa, que teme que o excesso de trabalho prejudique a análise pormenorizada dos diferentes tipos de crimes apresentados nessas audiências.
Ela sugere um possível aprimoramento. “O Judiciário pode atuar numa grande parte, mas algumas medidas que poderíamos pensar para a Lei Maria da Penha, como (aplicar) a Justiça Restaurativa, precisaria realmente de alteração legislativa. Atualmente, a conciliação e a suspensão condicional do processo (que permitiria a interrupção do processo enquanto o réu cumpre medida protetiva) foram alternativas afastadas em julgamento do Supremo Tribunal Federal. Passados 10 anos da lei, é tempo de pensar em aprimoramentos. Alguns o próprio Judiciário pode fazer, dentro da audiência de custódia. Em outros casos, precisaremos de alteração legislativa“, afirmou a professora Marília Montenegro.


Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias


















 



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