Gaston Bachelard
dizia que o fascínio universal pelo fogo tinha a ver com suas propriedades
tão poderosas quanto contraditórias. O fogo oferece proteção, abrigo, calor,
conforto, aconchego. Também oferece perigo, dor, sofrimento e morte. São
Paulo é fascinante e complexa como o fogo. Às vésperas de seu 462º
aniversário, a cidade tem muito a comemorar... e a refletir.
Estamos falando de
uma cidade que nasceu dinâmica, que já surgiu como ponto de encontro e troca
entre viajantes, exploradores e aventureiros, religiosos e profanos, europeus
e nativos, mercadores e escravos. Suas marcas de nascença são vistas até
hoje. Contra seu fundo cinzento, São Paulo é multicolorida. O cinza austero é
só um palco, ou uma tela, onde desfilam todas as cores, sabores, cheiros,
emoções, sentimentos.
São Paulo não é só do
Brasil. É do mundo. Sua vocação para cidade de encontro, de troca, de
crescimento, continua mais viva do que nunca. Essa vocação se vê também na
diversidade de línguas e culturas com as quais convivemos hoje. Essa é uma
cidade de migrantes, de imigrantes, de refugiados. De gente que foge e se
encontra. Que procura e acha. São Paulo é feita de quem nasce aqui e de quem
vem e pelas mais variadas razões não pode ou não quer sair. Ela nos absorve e
nós a absorvemos. Ela se torna uma parte de todos os que moram aqui. E todos
nós fazemos dela o que ela é.
É justamente nessa
riqueza e complexidade, nessa fricção e atrito, que São Paulo forja sua
identidade como a do fogo. Assim como ele, ela é intensa. Ao longo de sua
história ela acumulou títulos de “maior” nas mais diversas categorias: maior
cidade e maior centro econômico do Brasil, maior comunidade de representantes
de várias nacionalidades fora de seu solo nativo, maior número de pizzas
consumidas mensalmente... e por aí vai. E como o fogo, São Paulo é cidade de
extremos, de exageros, e também de contradições. Tudo aqui é grande: a
alegria, o sucesso, as conquistas, as glórias, os infortúnios, as misérias,
as ambiguidades. Grandeza e contradição são duas de suas principais marcas.
Ela é, sem dúvida, o avesso do avesso.
Dentre seus muitos
títulos, ela detém o de cidade com o maior número de falantes da língua
portuguesa no mundo. Esse foi um dos motivos para sua escolha como lar para o
Museu da Língua Portuguesa. Mas, lembremos, São Paulo é como o fogo, que
tanto acolhe quanto destrói. Assim, além de ter sido o lugar ideal para
abrigar o Museu, também foi o lugar que o presenteou com chamas. Por
descuido, irresponsabilidade (ou, pode-se dizer, por maldade, já que ela se
manifesta de muitas formas), São Paulo queimou um de seus grandes
patrimônios. E no processo destruiu ainda um bem mais valioso que qualquer
museu: uma vida humana.
A cidade brilha tanto
como um repositório quanto como um gerador de cultura para o Brasil e o
mundo. Mas quantos outros patrimônios culturais de São Paulo estarão hoje
também à beira do colapso? O estado do Museu do Ipiranga é um bom indicativo.
E olhando para nosso legado cultural de forma mais ampla, alguém tem notado
algo acontecendo nas escolas públicas de São Paulo? Elas não estão também
queimando lentamente?
E para além da
cultura e da educação, quantas outras vidas estão se perdendo de forma banal
nesta cidade de tantas oportunidades de “fazer a vida”?
O incêndio do Museu
da Língua Portuguesa, a pouco mais de um mês do aniversário da cidade, serve
como símbolo da relação ambígua de São Paulo com seu patrimônio cultural e
humano. Ela acolhe e abandona, cria e destrói, dá a luz e mata. Ele também
nos convida à reflexão e a uma mudança de postura. É bem provável que os
poderes públicos, nos níveis municipal, estadual e federal, continuem em sua
indiferença (ou, na melhor das hipóteses, atenção insuficiente) aos problemas
culturais e humanos da cidade. Mas São Paulo é feita por cada um de nós e
todos temos uma parte em fazer dela o que ela é. Cada um tem responsabilidade
em fazer com que ela seja a melhor versão possível de si mesma.
Uma coisa é certa. São
Paulo seguirá em sua vocação de ser grande. Cabe a nós decidir: grande em
quê?
Rodrigo Franklin de Sousa - Doutor em Letras pela Universidade de Cambridge e professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
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