sábado, 21 de março de 2015

Direito. Não há mais conjeturas




Sob a ressalva de exceções dignas de admiração, o direito continua estagnado, em todo o mundo, há várias décadas. As guerras mundiais que sangraram o século XX serviram à criação de novos direitos, desde seus primórdios, no universo de seus grandes sistemas: o romano-germânico, a que nos filiamos, o anglo-saxão e a criação, para logo desaparecer no processo histórico, o sistema soviético.
O pensamento inato ao homem o abala. Da Academia de Platão e do Ateneu de Aristóteles viajou e se instalou nas magníficas universidades modernas. Claramente, muitos elementos foram acrescidos, porém a roda continou a girar no mesmo sentido dos tempos primitivos A pergunta do que seja a Justiça continuou arrostando os cérebros. Costuma-se apontar o conceito de função social da propriedade, antes desconhecida, como uma grande conquista. É pouco. Fundamentalmente, os juristas não conseguiram imprimir significativas transformações no direito processual, civil e penal, ferramenta que faz com que os fatos se transformem em direito e o direito, num ciclo virtuoso, volte a transformar-se em fato, significativo para o vencedor.
A Presidente Dilma Roussef acaba de promulgar o novo Código de Processo Civil, em pleno incêndio da República, para vigorar em um ano. Trata-se de um grande esforço de notáveis juristas, reunidos em comissão presidida pelo Eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux, que, infelizmente, produzirá pequenas mudanças para a sociedade.
O problema não está na deficiência de qualidade da obra. Está no emprego dos conceitos do sistema de ideias mais antigas do mundo e que recebeu parcas mutações. Vozes isoladas no Brasil cuidam da filosofia do direito, mormente após nos ter deixado o insigne mestre Miguel Reale, arquiteto inigualável do pensamento jurídico crítico. E somente da crítica judiciosa das instituições podem vir à luz as transformações significativas de que o Brasil carece no terreno jurídico.
As manifestações políticas que se fizeram sentir em todos os quadrantes do território nacional e que reuniram cerca de 3 milhões de pessoas recebem todo tipo de interpretações, no que concerne às reivindicações de vária natureza expostas nas ruas. É possível, porém, ficar um anseio que justifica todos os demais; os brasileiros querem Justiça.
Nenhuma ideia formulada pelo conglomerado humano em evolução foi tão questionada como o conceito de Justiça. Defini-la não envolve tantas dificuldades. O mais desafiador é preenchê-la com elementos concretos e definir critérios para se realizarem. Uma definição clássica indica que Justiça é o ato de "dar a cada um o que é seu". Ficamos na obscuridade: o que é de cada um? No século conturbado em que vivemos, somos atraídos a dizer que Justiça é propiciar a todos os homens viver em estado de razoável conforto, por todo o expectro do planeta; em estado de liberdade, maxime em estado de liberdade negativa, aquela que nega ao Estado, segmento organizado para servir ao homem, o poder de oprimi-lo e inverter os termos: dele servir-se, em favor de uma casta governamental dominante e de seus associados; em paz e sem temores do amanhã. Justiça social é um termo desgastado e pleonástico: toda justiça é social, ao considerar-se que todos os cidadãos, sem nenhuma exclusão, é dela credora.
Evidentemente, para que a humanidade viva em relativo conforto são necessárias medidas no plano da economia política, das finanças públicas, do direito econômico, do direito ambiental, do trabalho etc. E, o mais importante, é a erradicação da corrupção, do tráfico de drogas e do crime organizado. Não podemos nos esquecer, porém, que esses males que estremecem a vida contemporânea são praticados por um grande número de homens como nós. E só conhecemos um método de defesa da banda sadia da sociedade: a repressão e, pior, a repressão do encarceramento, no exato sentido vigorante desde a Idade Média. Em muitos países, como o Brasil, os cárceres não deixaram de ser um depósito de condenados, para que vivam afastados de nós, por algum tempo, enquanto durar a pena imposta. Depois disso, saem às ruas, revoltados e qualificados como criminosos, porque essa é a lição resultante da reclusão em estabelecimentos que dispensam comentários. Se nós já não estivermos ao seu alcance, por vivermos aposentados em edifícios e condomínios confinados, ou por já termos ido conhecer o que nos aguarda após esta passagem terrena, à merce da violência estarão nossos filhos e nossos netos.
Discurso desgastado, dirão. Porque não se vincula o direito penal a uma educação social efetivamente construtora, desde os primeiros anos de formação da criança até a última idade adulta.  Voltemos à ideia de Justiça e da falência das conjeturas, enquanto pensamentos criativos e criadores. A Justiça não deve ser repassada a ninguém e tampouco a um Estado que teríamos criado para nos livrarmos de nossa consciência. Deve ser incrustada na consciência de todos os homens. Justiça é o lado ético da filosofia, a crítica da razão prática, de Emmanuel Kant. A adoção pelo número maior possível de seres humanos da convicção sólida quanto aos procedimentos que devemos trilhar. O valor que esses procedimentos transportam. Sua indispensabilidade, essencial à nossa própria sobrevivência. Retornando ao grande pensador de Konigsberg, "o que dá sentido a esta vida é ter um céu de estrelas sobre mim e um mundo moral dentro de mim". "Faça de sua conduta algo que possa ser tomado como categoria universal". "Olhe nos olhos de seu interlocutor como um homem, jamais como um objeto". E múltiplas lições de ética podem ser inculcadas na consciência coletiva. Inclusive a advertência de Jung: se não agir eticamente, serei um eterno neurótico. O emprego martelante dessas concepões em disciplina obrigatória de todos os períodos letivos obviamente produzirá frutos. Não imediatamente, como seria o extermínio imediato de criminosos. No entanto, é simples comparar e constatar o mal e o bem de ambos os caminhos e fazer a devida opção.
Não se trata do direito do humano, mas no humano. É essa criatura, que não vem pronta, mas potencializada para enfrentar um processo de vida, tanto no plano individual como no social, que, antes de tudo, deve receber formação, contínua e rigorosa, num país que está com um pé no abismo infernal. Os litígios, e não há sociedade que deles escape, devem, antes de tudo, ser resolvidos na interação de consciência de seus atores. O Poder Judiciário é a última alternativa. Mas, o exemplo deve vir de cima. Os grandes monopólios, públicos e privados, são os primeiros que compelem o cidadão a ter um advogado a tiracolo, que se dirigirá ao protocolo do fórum para engrossar o rol de processos em andamento.
O grau de conflituosidade judiciária no Brasil é escandaloso.  E não traz soluções mínimas. A União é a principal cliente do Judiciário, não raro derrotada em suas demandas, Para depois, na execução, reforçar a natureza de um Estado caloteiro, via precatórios, únicos no mundo. A Presidente Dilma sancionou o projeto de novo Código de Processo Civil silenciosa e acuada pela sociedade. Quase ninguém, fora da classe juridica, percebeu, Assim se passam, é dizer, escapam, neste país de Deus,  as soluções de nossos mais importantes desafios.

Amadeu Garrido de Paula - advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho. 

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