Cientistas do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e
Fármacos investigaram como se forma a principal enzima envolvida na
multiplicação do novo coronavírus dentro das células. Achados foram descritos
no
Journal of Molecular Biology (
cristal da proteína 3CL do
SARS-CoV-2; foto: CNPEM/divulgação)
Cientistas ligados ao Centro de Pesquisa e Inovação em
Biodiversidade e Fármacos (CIBFar) desvendaram detalhes do
processo de maturação da principal enzima envolvida na replicação do novo
coronavírus, conhecida como 3CL. A descoberta, descrita no Journal of Molecular Biology,
facilita a busca de medicamentos capazes de sabotar esse processo logo no
início.
“Em um ano e meio de pandemia, já
temos, no mínimo, meia dúzia de vacinas em uso clínico, mas nenhum fármaco com
comprovada eficácia e segurança. Antiviral é mesmo mais difícil de desenvolver.
Porém, ainda que tenhamos bons imunizantes, obter um medicamento para a
COVID-19 segue sendo muito importante, caso o vírus escape da vacina”,
afirma Glaucius Oliva,
coordenador do CIBFar – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da
FAPESP sediado no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São
Paulo (IFSC-USP).
No artigo,
os cientistas descrevem o mecanismo molecular pelo qual a principal protease do
SARS-CoV-2 – enzima responsável pela multiplicação do vírus – se autoprocessa,
tornando-se ativa para replicar o material genético do patógeno (RNA) dentro da
célula hospedeira.
“Quanto mais entendemos o metabolismo
do vírus e suas etapas de replicação, mais facilmente conseguimos vislumbrar
alvos nesse processo para, então, desenvolver moléculas capazes de travá-lo
logo no começo”, diz Gabriela Noske,
doutoranda do CIBFar e primeira autora do artigo.
Segundo
Oliva, trata-se de um estudo de ciência básica, mas com aplicações imediatas.
“Diferentemente do que observamos em outros vírus, como o zika, o dengue ou o
da febre amarela, no novo coronavírus a protease não atua de forma monomérica
[como uma molécula isolada]. Para que ela se ative e passe a multiplicar o RNA
do SARS-CoV-2, ela precisa ser dimérica, ou seja, é necessário um par de cópias
da protease para que ela possa cortar a si mesma e às outras proteínas
responsáveis pelo metabolismo do vírus dentro da célula”, explica.
Oliva lidera um projeto
multidisciplinar, apoiado pela FAPESP,
que reúne pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP),
do Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP), da Faculdade de
Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP-USP), da Universidade Estadual
Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) na busca de
antivirais para o tratamento de COVID-19 (leia mais em: agencia.fapesp.br/33270/).
Múltiplas etapas
O RNA do
SARS-CoV-2 é protegido por um “envelope” formado por lipídios e proteínas –
entre elas a famosa spike, ou espícula, que compõe a estrutura de coroa que dá
nome à família Coronaviridae. Quando o vírus invade a célula e é englobado por
ela, o RNA é liberado da cápsula.
Dentro da
célula, o objetivo principal do vírus é se multiplicar. Nessa fase, as
proteínas estruturais deixam de ter função fundamental (transporte do RNA e
evasão do sistema imune) e entram em cena as chamadas proteínas não
estruturais, responsáveis pelo metabolismo viral dentro do hospedeiro.
“O microrganismo precisa fazer cópias
de seu RNA. Como ele não tem todos os mecanismos para isso, precisa sequestrar
algumas funções da célula invadida. Outras funções metabólicas, específicas do
vírus, cabem às proteínas não estruturais, como a protease principal e outras
15 moléculas. Nosso estudo teve como enfoque a protease principal”,
conta André Godoy,
coautor do artigo e pesquisador do IFSC-USP.
Godoy
explica que, enquanto as proteínas estruturais costumam servir de alvo para o
desenvolvimento de vacinas, as não estruturais são usadas como referência para
os medicamentos antivirais. É o caso dos coquetéis usados no tratamento da
Aids, que têm como um dos alvos a protease do HIV.
A
descoberta de que a protease principal do novo coronavírus passa por diferentes
fases até se tornar madura e, então, favorecer a multiplicação do SARS-Cov-2 na
célula infectada só foi possível graças a uma investigação realizada na mais
complexa estrutura científica do país.
No ano passado, o experimento
realizado por Godoy e a pesquisadora Aline Nakamura inaugurou
a primeira estação de pesquisa do Sirius – o acelerador de partículas de última
geração que está sendo finalizado no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e
Materiais (CNPEM), em Campinas (leia mais em: agencia.fapesp.br/34396/).
Em três
dias, com auxílio de um potente feixe de luz síncrotron, foi possível
determinar a estrutura de mais de 200 cristais de duas proteínas do novo
coronavírus. Entre elas estava a protease principal, em várias formas e em complexos
com vários ligantes.
“Junto com
a spike, a protease principal é a proteína mais estudada no novo coronavírus. O
que não se sabia até então era como o SARS-CoV-2 processa duas cópias dessa
enzima para criar, na sua estrutura, a região chamada de ‘ciclo ativo’, onde
consegue processar as outras proteínas sintetizadas a partir da informação
contida no genoma viral. Existem outros tipos de vírus que também têm essa
característica, a inovação neste estudo está em entender como isso tudo
acontece”, informa Godoy.
Os
pesquisadores explicam que, por ser um vírus de RNA, o SARS-CoV-2 já chega na
célula pronto para ser transcrito pela organela chamada ribossomo e, desse
modo, produzir proteínas não estruturais.
Porém,
como ele tem uma única fita de RNA, antes é necessário decodificar todas as
proteínas não estruturais (e estruturais) inúmeras vezes. Para isso, ele as
produz como uma longa e única proteína (poliproteína), que depois precisa ser
quebrada, formando as 16 moléculas responsáveis pelos mecanismos metabólicos.
“Por ser
uma estrutura muito mais simples, o RNA do vírus codifica todas as proteínas
juntas, coladinhas, como se fosse um longo colar de contas. São produzidas nos
ribossomos da célula invadida na forma de uma longa poliproteína, que precisa
ser cortada em pedaços. No entanto, existe um problema: quem corta as proteínas
é a protease principal, que também está nesse ‘colar de contas’. Portanto, ela
precisa dar um jeito de cortar a si própria e, a partir disso, ir clivando as
outras”, explica Oliva.
As
análises com o feixe de luz síncrotron – um tipo de radiação eletromagnética
extremamente brilhante e muito usada em estudos de biologia estrutural –
permitiram que os pesquisadores identificassem como a protease principal
realiza esse processo. O trabalho revelou que, ao clivar suas duas pontas, a
protease principal modifica sua estrutura.
“Além
disso, demonstramos que, para o processamento de uma das pontas [denominada
C-terminal], a enzima precisa de um parceiro dímero, ou seja, uma proteína
igual que consiga clivar a parte da frente. Ela consegue clivar uma ponta
sozinha, mas não a outra. Já o parceiro [a outra proteína madura] vai se ligar
a essa porção para então clivar o que falta”, relata Godoy.
O processo
de maturação da protease principal, explica o pesquisador, permite que ela saia
de um estágio em que faz parte de uma longa cadeia de proteínas, consiga se
autoclivar na parte N-terminal, encontrar com outra cadeia dentro da célula,
formar um dímero e fazer o processamento da porção C-terminal, formando por fim
sua estrutura madura e ativa.
Luz no fim do túnel
De acordo
com o coordenador do CIBFar, a farmacêutica Pfizer está realizando ensaios
clínicos com um medicamento que pode barrar a protease principal, mas em sua
fase madura. A farmacêutica Merck também tem um estudo clínico com uma molécula
que bloqueia outra proteína não estrutural, chamada polimerase – responsável
por sintetizar cópias do RNA viral.
Oliva
ressalta que todo fármaco antiviral atua se encaixando em um receptor. “O mundo
inteiro está em busca de drogas candidatas que se encaixem na protease, porém,
olhando a estrutura da enzima já pronta, madura. O que mostramos é que existem
variações de estágios anteriores dessa protease que podem ser alvos mais
interessantes para o desenvolvimento de fármacos. É como cortar a erva daninha
antes que ela cresça”, conclui.
O artigo A Crystallographic Snapshot of SARS-CoV-2 Main Protease Maturation
Process pode ser lido em www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0022283621003429.
Maria
Fernanda Ziegler
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/descoberta-facilita-busca-por-farmaco-capaz-de-sabotar-a-replicacao-do-sars-cov-2/36582/