Nas
últimas semanas, a pandemia da COVID-19 demandou respostas do Direito nas mais
diversas áreas. Perguntas sobre revisão de contratos, pagamento de empregados,
tributação, entre outros assuntos, estavam e estão na ordem do dia, desafiando
a busca por soluções criativas e adequadas, que atentem para o contexto
socioeconômico criado pela crise.
Simultaneamente,
a pandemia ressaltou a importância de uma ferramenta jurídica consolidada, mas
pouco difundida no Brasil: o testamento. Conforme dados recentes da Gazeta do
Povo¹, os cartórios do Paraná registraram um crescimento de 70% na procura por
testamentos, certamente em razão de a doença ser mais agressiva na população
idosa, considerada grupo de risco.
Mas o
anseio de planejar a sucessão hereditária não é de hoje. Aos poucos, a
sociedade tem compreendido a importância de antecipar e organizar os efeitos
patrimoniais gerados pelo falecimento, pela ciência de que a sucessão legítima
possui amarras que um planejamento sucessório pode resolver. Afinal, poucos
procedimentos são tão burocráticos, onerosos e desgastantes quanto os
decorrentes do falecimento.
A busca
por um planejamento sucessório envolve aspectos tão distintos como a procura
pela redução da carga tributária, por fazer efetiva a vontade do titular do
patrimônio e, principalmente, por reduzir a possibilidade de brigas familiares
no futuro. Não à toa, empresas familiares estão crescentemente em busca de uma
arquitetura sucessória que permita promover a continuidade dos negócios de
maneira mais efetiva, encontrando meios jurídicos de, por exemplo, deixar o
controle empresarial para determinado sucessor ou beneficiar algum terceiro.
O
planejamento sucessório é avaliado de acordo com a estrutura familiar e
patrimonial de determinada pessoa, podendo contar com uma conjugação de
alternativas jurídicas, como a constituição de holdings, a doação em vida, a
implementação de usufruto e, não menos importante, a elaboração de um
testamento.
O
testamento pode conter disposições sobre questões existenciais (doação de
órgãos, reconhecimento de filho etc.) e patrimoniais, sendo ato praticável por
pessoas acima de 16 anos que tenham pleno discernimento. É revogável, parcial
ou totalmente, a qualquer tempo pelo seu autor.
Ainda
que a legislação preveja mais de uma modalidade de testamento, comumente
opta-se pelo testamento público.
O
testamento público é declarado e lavrado perante um tabelião. Para que tenha
validade, é lido ao testador e a duas testemunhas – que não precisam ser de
conhecimento do testador – sendo assinado por todos. O testador pode escolher
qualquer cartório de notas, ainda que não seja o local de seu domicílio.
Modalidade
menos frequente, por conferir menos segurança jurídica, é o testamento cerrado,
escrito pelo próprio testador, ou por quem o testador escolher, em instrumento
particular. O conteúdo do documento é, em geral, apenas por ele conhecido. O
testador apresenta o testamento ao notário, para que emita um auto de
aprovação, documento que atesta que recebeu o testamento lacrado. Logo, esse é
o testamento ideal para quem deseja manter sigilo sobre as disposições.
Tem-se,
ainda, o testamento particular, que é elaborado pelo próprio testador e
validado pela assinatura de três testemunhas. Após a morte do testador, o
documento é apresentado perante o Poder Judiciário.
Essa
modalidade também é pouco utilizada no Brasil, mas pode ganhar relevância em
momentos de crise como o da pandemia da COVID-19, porque a legislação prevê que
em circunstâncias excepcionais o testador pode elaborar de próprio punho um
testamento, sem a presença de testemunhas. Essa facilitação é relevante, porque
não pode ser testemunha quem for nomeado herdeiro ou legatário, o que, em
tempos de restrição do convívio social, poderia dificultar demasiadamente o ato
de testar.
Essa
modalidade excepcional do testamento particular é comumente conhecida por
testamento hológrafo, e requer confirmação posterior do documento, após o
transcurso da circunstância excepcional.
Uma
categoria importante para que se compreenda o grau de liberdade conferido ao
testador é a noção de herdeiro necessário, que, segundo a lei, são os
descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
O
testador que não tem herdeiros necessários pode dispor livremente da totalidade
de seu patrimônio. Isso significa que lhe é permitido, por exemplo, testar a
integralidade de seus bens a um terceiro.
Já o
testador que possui um ou mais herdeiros necessários pode dispor de apenas 50%
de seu patrimônio, pois os herdeiros necessários têm direito ao restante,
parcela reservada chamada de legítima.
Ainda
que, pela letra da lei, sejam considerados herdeiros necessários apenas os
ascendentes, descendentes e o cônjuge, o entendimento prevalecente atualmente é
o de que o companheiro também deve assim ser considerado.
Isso
porque em razão do julgamento do Recurso Extraordinário 878.649/MG, foram
estendidas ao companheiro ─ termo
utilizado para parceiros em união estável ─ as
regras sucessórias aplicáveis ao cônjuge. Ainda que na decisão não houvesse
discussão direta sobre o alcance do julgado, tendo, de fato, ficado aberto o
enquadramento ou não do companheiro como herdeiro necessário, a tendência do
Direito de Família e Sucessório atual é a de equiparação dos efeitos do
casamento à união estável.
Essa
discussão está em voga na briga judicial envolvendo o testamento de conhecido
apresentador de TV. No caso do apresentador, sua alegada companheira foi totalmente
excluída das disposições do testamento, tendo que ingressar judicialmente para
requerer a invalidação do testamento, por meio do reconhecimento de sua união
estável. Caso afirmada a união estável, seria possível, com fundamento no
julgamento do STF, pleitear parte da herança, pois haveria direito à legítima.
Por
fim, saliente-se que o testamento é negócio jurídico formal, sendo essencial
que se tomem todas as cautelas necessárias a fim de evitar seu rompimento,
caducidade, ou invalidação no futuro. Trata-se de exemplo de rompimento a
exclusão de determinado herdeiro necessário desconhecido à época da elaboração.
De caducidade, a alienação de algum bem objeto do testamento, ou, ainda, a
superveniência do falecimento de algum sucessor antes do testador. De
invalidade, disposição que contrarie uma exigência legal, como o testamento
feito por uma pessoa sem consciência de seus atos.
A
precaução é essencial. Afinal, a legislação prevê que se for o testamento
considerado nulo ou caduco, subsistirá a sucessão legítima, isto é, a herança
será partilhada entre os herdeiros necessários, na forma da lei. E, sendo
assim, inexistirá a observância do que certamente seria a real vontade do
testador.
Marina Luiza Amari - advogada,
mestranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do
Paraná