sábado, 23 de novembro de 2024

Poder sobre o outro, cultivo da dúvida e medo da solidão sustentam relações tóxicas

De acordo com a psicanalista Tássia Borges, “saber de si pode fazer com que a pessoa consiga compreender que está numa relação tóxica para sair dela

 

Nas comédias românticas e nos contos de fadas, o “príncipe” e a “princesa” beiram a perfeição: são repletos de virtudes, amam incondicionalmente, aparecem sempre que é necessário e vivem em prol da pessoa amada, adivinhando até seus pensamentos e desejos. É por isto que, mesmo na “vida real”, há quem sonhe e busque este par perfeito!

 

No entanto, sabemos que, na realidade, não é assim que as coisas acontecem. “O outro, assim como nós, nunca será uma metade que nos completa. Cada um terá suas faltas, desejos e impossibilidades que, em nada, impedem que o amor aconteça”, explica a psicanalista Tássia Borges. “O problema é quando um deixa de existir: pode ser indício de que aquela relação é tóxica”. 

 

Numa relação tóxica, seja de forma explícita ou subliminar, um quer ter poder sobre o outro. Como estratégias, usa a dúvida, mina a autoestima e o pensamento crítico daquele que acredita que ama. “Há uma psicanalista chamada Joan Riviere que disse que amor pelo poder é uma forma disfarçada de ódio, pois o outro não importa”, cita Tássia. “Quem age assim, acredita que a obediência a si é demonstração de amor, ou seja, é assim que esta pessoa se sente amada”. 

 

Sinais – Um dos sinais clássicos de uma relação tóxica é fazer uso da dúvida. “É aquela pessoa que vai sempre afirmar que o outro entendeu errado o que ele disse, que não diz nada de forma clara de maneira proposital para alimentar a confusão e chega a até a chamar o parceiro ou a parceira de loucos”, detalha a psicanalista. “O alvo desta forma de desestabilização pode ir perdendo a noção de si, tornando-se ainda mais vulnerável”. 

 

Também de forma sutil ou escancarada, outra estratégia é afetar a autoestima. São comuns falas como “ainda bem que você tem a mim”, “quem vai lhe querer assim” e até mesmo comentários relativos à aparência, idade ou aspectos profissionais e financeiros. 

 

“Neste jogo de poder, há ainda a vitimização, o uso de doenças ou dos filhos como argumentos para manter o aprisionamento e até o dinheiro”, completa a especialista.

 

Por que é difícil reconhecer ou sair de uma relação tóxica - O perigo de uma relação tóxica é quando os sinais acima citados acontecem de uma forma sutil. “Ela pode ser facilmente confundida com cuidado. O manipulador, aquele que exerce um poder sobre o outro, nem sempre é rude, impositivo, grosseiro ou violento. Pode estar “escondido” sob uma pessoa socialmente aceita e até admirada”, alerta Tássia. 

 

E mesmo quem reconhece que está numa relação tóxica, especialmente as mulheres, pode ter dificuldades de sair dela por inúmeras razões. Segundo a psicanalista, as mais comuns são o medo da solidão, pensamentos como “ruim com ele, pior sem ele”, não querer sair de uma falsa zona de conforto e dificuldade de abrir mão de um status social ou financeiro apesar da infelicidade.

 

Para sair de uma relação tóxica, é preciso conscientizar-se sobre o que é, de fato, o amor para si. “Todos nós queremos ser amados. Mas amor é também liberdade. Neste sentido, vale refletir: eu me sinto livre? Posso falar e fazer o que eu quero sem que o parceiro ou a parceira precise aprovar e determinar o certo e o errado? Ou sofrerei retaliação?”, adverte a psicanalista. 

 

“Essencial também é a pessoa saber de si, ou seja, quem é, conhecer sua história, o que gosta e o que não gosta, seu limite emocional e, principalmente, responsabilizar-se pela própria vida”, reforça Tássia. “Só assim será possível sair do lugar de objeto e assumir o papel de sujeito em toda e qualquer situação ou relacionamento”.  

 

Tássia Borges - especialista em assuntos relacionados à saúde mental e o psiquismo – entre eles ansiedade, narcisismo, questões geracionais, de relacionamento, luto, solidão e entraves psíquicos que podem impedir atletas de atingir altas performances. Mestre em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Método Psicanalítico e Formações da Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Bacharel em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), ela trabalha com educação e linguagem há mais de 20 anos. Fundou e dirige o Instituto Kleiniano de Psicanálise, cuja missão é compartilhar de modo responsável e especializado os conhecimentos técnico-teóricos da psicanalista austríaca Melanie Klein (1882-1960) bem como de autores que dialogam com seu pensamento. Há 15 anos, Tássia atua como psicanalista, supervisora e professora não só no IKP, mas em diversas outras escolas de psicanálise em São Paulo e outros estados. Possui formação em psicanálise freudiana e conhecimento das escolas inglesa e francesa. É coordenadora de Psicanálise do GEPECH – Grupo de Estudos e Pesquisa em Comportamento Humano – que tem por objetivo desenvolver conhecimento e pesquisa a partir de estudos transdisciplinares envolvendo neurociência e psicanálise, sobretudo neo-kleiniana.



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