Luc Ferry, filósofo e homem público francês, em Os cinco
sentidos da vida humana apresenta as respostas que a História inventou para
providenciar o que seria a vida boa, ou a vida harmoniosa, ou a vida com
qualidade. Eis um rol esforçado em oferecer sentido à existência.
A primeira advém da Grécia antiga: a vida que conjugue a
harmonia de si com a harmonia do Cosmos. Ao humano caberia identificar seu
lugar nessa Eternidade ordenada e nela inserir-se. A segunda é a proposta das
religiões monoteístas. Essa compreensão solicita submissão a um deus que seria
o caminho, a verdade e a própria vida. A terceira propõe que o humano se
harmonize com a humanidade: o meu espaço de vida articulado com o espaço de
vida do outro. A quarta é estar em conciliação consigo mesmo: amar-se e se
bastar.
Na avaliação de Ferry, a primeira hipótese nos deixa
vinculado a algo demasiado exterior ao humano; a segunda já não tem um deus
humano, pois a humanidade desprendeu-se do deus que inventou; a terceira é
demasiado humana; a quarta, mais que demais humana.
A quinta possibilidade de estar feliz na vida é formulada
pelo próprio filósofo: a harmonia de si com aquele\a que amamos ou poderíamos
amar: irmandade, amante, companhia, família etc. Eu diria: amar o literalmente
próximo supondo que haveria reciprocidade.
Faço as minhas contas: a invenção dos telescópios venceu
a primeira hipótese: o Universo não é uma ordem perene. Se alguma divindade o
criou, não soube rematá-lo. O Cosmos é caos. A segunda, a religiosa, não proveu
felicidade nem no tempo em que o divino era propriedade privativa da igreja
católica. Hoje, deus está customizado, cada um tem o seu; esfacelado,
enfraqueceu-se.
Aprecio a terceira hipótese como modo de estar no espaço
público: não imagino vida feliz sem harmonia em Sociedade. Esta é a invenção
democrática do animal social. A quarta é necessária, mas não suficiente.
Amar-se não basta. Somos incompletos, queremos o amor do outro. A “moda” do
bastar-se é falsa. Uma coisa é não se suportar só, outra é a (in)suficiência da
solidão.
Retomo a sugestão de Ferry: haverá vida boa se me
harmonizo com aqueles\as que me circundam. Desconfio disso, pois os meus
circundantes teriam que corresponder à minha vontade. Ora, em tempos
narcísicos, temos egos a preservar. Ademais, egos não cabem uns em outros; são
indecomponíveis e irredutíveis. Os egos interessados, pois, teriam que
“negociar”.
Anoto que na vida familiar tradicional o convívio
dependia da subsunção da mulher, dos filhos e da amante no homem chefe de
família. Dentre outras subalternidades, ao se casar, a esposa tomava como
próprio o nome do marido. As ocorrências produtoras de tal subalternação, por
suposto, subalternizavam egos. Mas já não se conta com tais circunstâncias
sociais e seus efeitos. Como, hoje, impor a alguém o cumprimento de dedicação
amorosa?
O apego que remanescia na arrumação familiar perene era,
sobretudo, amarração material. Após os efeitos feministas na vida doméstica, a
mulher, advindo o desgosto afetuoso, pode variar seu endereço. Aboliu-se a
função ordenadora “cabeça de casal”. A extinção do “patriarca” deriva da
superação do arranjo social que oferecia um modo único de amar: um pacote
sólido em que as partes tinham papeis definidos para cumprir e reproduzir.
O amor, já mais líquido, está por conta da imaginação
inventiva. Uma convivência desejável e possível, ou seja, que possa ser
pactuada e cumprida com prazer, há de ser inventada pela ousadia dos
interessados. E descabe intransigência; vale o combinado honesto entre pessoas
honestas cientes que as conjunturas têm variáveis incontroláveis. Ademais,
vontades movem-se.
Claro, alguma ansiedade, pois, se é difícil inventar-se a
si, inventar-se a dois é uma formidável aventura cotidiana. Novamente, há egos
envolvidos. Para as construções afetivas necessárias à vida a dois os egos
implicados devem dar-se um denominador comum.
Denominador comum nomeado intimidade: há o ego um e o ego
dois, cada qual com sua respeitável vida privada. Esses egos, todavia, se não
arquitetarem uma intimidade que será o denominador comum de ambos, não
conviverão. A intimidade será o local de trânsito consentido de um ego pelo
outro. Edito trechos de O cuidado com a intimidade, Café Filosófico com Renato
Janine Ribeiro: Alguém da plateia propõe uma questão importante:
“Todos estamos na vida pública por causa da internet.
Nesse mundo, a preservação da intimidade é positiva. No relacionamento pessoal
é ao contrário. O problema é que as pessoas não conseguem compartilhar sua
intimidade no casamento, na relação de amizade e na relação familiar. A gente
está vendo o problema inversamente: as pessoas não conseguem estabelecer um
relacionamento, um elo, um vínculo que contenha uma intimidade que tem que ser
não mais preservada, mas sim, de alguma forma, exposta”.
Ribeiro situa o risco de generalização da percepção do
afirmado ou da própria afirmação, e pondera: “A ideia de que esteja difícil
partilhar a intimidade, ou seja, construir a intimidade a dois, é interessante
porque talvez a blindagem, quer dizer, o medo de se expor se torna tão grande
que acabamos não nos expondo; acabamos fazendo as coisas nos lugares trocados:
a gente abre a intimidade pra quem não deve e fecha a intimidade pra quem deve.
Nós estamos numa fase de mudanças intensas e a velocidade
dessa mudança é intensificada. Por pior que esteja todo o quadro, essas
mudanças intensas representaram um avanço grande na liberdade e na verdade. Nós
lidamos mais com a verdade dos relacionamentos, a verdade dos sentimentos do
que sociedades anteriores. E nós estamos acostumados ao valor da liberdade mais
do que sociedades anteriores, e essas duas coisas, verdade e liberdade, são
dificílimas, é dificílimo lidar com a verdade, seja dizer a verdade, seja dizer-se
a verdade – às vezes é dificílimo dizer a verdade para si próprio. E a
liberdade: reivindicá-la e reconhecê-la é muito difícil.
Esses dois pontos cruciais, como nós podemos fazer isso?
Como diz o personagem feito por Marcello Mastroianni num momento de Oito e Meio
(filme de Federico Fellini, 1963): 'Eu queria poder dizer toda a verdade sem
ferir ninguém, sem magoar ninguém'. Talvez seja esse um dos pontos: poder dizer
toda a verdade sem que isso cause infelicidade e poder lidar com a liberdade
sem que isso acresça infelicidade no mundo”.
Ribeiro varia de uma ética da intimidade a uma ética para
o mundo. Está muito bem, pois sua resposta não deixou de contemplar a questão
levantada. Tema, aliás, aprofundado em outro Café Filosófico com o mesmo filósofo.
Simplificar a Vida (editado), apresentação: “Será que nas
relações amorosas o excesso de aproximação pode virar um problema? Será que a
intimidade (eu diria a privacidade, pois nomeei intimidade o construído pela
relação) tem um limite que não pode ser ultrapassado? Renato Janine Ribeiro faz
uma análise do filme Closer (Mike Nichols, 2004) para discutir as diferenças
entre estar mais perto e estar perto demais da pessoa amada”.
“Closer quer dizer mais perto; em português tornou-se
Perto Demais. A diferença entre o zoom e o demais é que estar mais perto
significa um acesso à intimidade do outro; perto demais é um excesso, significa
que de alguma forma nos queimamos. Então, ou a ideia de que estamos nos
aproximando talvez seja uma coisa boa, talvez estejamos vendo as pessoas mais
de perto, ou talvez estejamos perto demais.
Qual a veracidade desses laços? Qual a capacidade de
vivê-los? Aparentemente nós temos três possibilidades. O laço se mantém na
medida em que ele é falso e se tolera uma certa falsidade ou uma certa
ignorância. Não é só a falsidade da mentira, isso o filme não sugere, mas o
filme sugere que o laço, para se manter em certos casos, deva partir da
aceitação de não querer indagar determinadas coisas.
Uma questão interessante: Perto Demais alterna o jogo
entre a verdade e a mentira, a verdade e a falsidade, a verdade e a traição, a
verdade como surpresa. Outro aspecto, que me pareceu o ponto mais forte do
filme, é: e se for possível ter esse contato, se o demais for apenas mais, se
perto demais for mais perto, for uma intimidade grande, qual a relação então
disso com a verdade?
É conhecer, é não ter ilusão e ainda assim gostar e ainda
assim se relacionar. Isso eu achei extraordinariamente forte: essa ideia de que
seja possível ter um laço que passe por conhecer a verdade sobre o outro, não
estar mais fascinado pelo outro, mas ter a condição, com base nisso, sabendo a
realidade, de manter esse laço de querer e de apostar muito pela manutenção
desse laço.
O filme, a lição que se faz, é que se você aproxima
muito, você só tem êxito se você chegar a um momento em que você consegue
conhecer muito bem a outra pessoa, a pessoa de quem você gosta, reconhecer-lhe
todos os defeitos, não ter nenhuma expectativa maior em relação a ela, e ainda
assim ser capaz de manter o sentimento e o laço”.
Retomo-me: dada a independência tomada pelas mulheres
sobraram raros egos dispostos a se dissolver noutros egos para satisfazer
expansões egóicas. Então, cada um\a é cada um\a em sua reserva de vida privada
de vida pessoal indevassável. Descabe invasão de privacidade.
Agora, a intimidade: construção espontânea que amantes
fazem para trânsito de um\a pelo outro\a. A intimidade é a área de intersecção
(teoria do conjunto) onde estão os elementos que, simultaneamente, pertencem a
dois ou mais conjuntos. Uma situação em que partes se imbricam e,
propositadamente, se enleiam no tanto em que se imbricaram.
Essa intimidade é consubstanciada por egos livres que
livremente se expõem ao outro\a com a liberdade de discorrer com verdade sobre
si. Egos que se narram e ao se narrarem aportam recursos afetivos à vida
íntima. Retorno ao “alguém” da plateia que indagou Ribeiro: “Uma intimidade que
tem que ser não mais preservada, mas sim, de alguma forma, exposta”.
Na forma antiga, um ego se anulava em outro. No que
proponho, os egos se contam sem limite, para que reciprocamente se saibam sem
limite. É que se me sonego no meu me contar não estou todo\a na relação, e se
minto sobre mim estou falsificado\a na relação. Omitir ou mentir adultera quem
omitiu ou adulterou, logo, a convivência mesma sobra adulterada.
Quando quem está numa relação é uma contrafação, a
realidade é que outra pessoa está nela. Quem verdadeiramente é a pessoa que se
frauda na vida em comum? É, claro, um alguém que lhe está ausente. Assim, seja
quem seja que não esteja relação afetiva, os afetos dessa relação restam um
simulacro. Renato: “O laço se mantém na medida em que ele é falso e se tolera
uma certa falsidade ou uma certa ignorância”.
Luc Ferry: já fomos seres de um Universo sem tamanho; já
inventamos um deus para nos amparar; já apostamos tudo na humanidade a que
pertencemos; já tivemos a petulância de acreditar que poderíamos nos bastar a
nós mesmos. Nada disso foi bastante. Estamos desde sempre por aí, carentes de
alguém que nos ame, de alguém para amar. Buscadores de felicidade.
Luc Ferry, hipótese de vida feliz: a harmonia de si com
aquele\a que amamos ou poderíamos amar. Não, contudo, a meu sentir, sem os
pressupostos aventados: privacidade: espaço próprio indevassável; intimidade:
espaço comum no qual amantes em harmonia depositam cada qual sua inteireza:
“qualidade ou estado daquilo que é inteiro” (Houaiss); inteiro: “com todas as
suas partes; a que não falta nada; completo, total” (Houaiss).
Léo Rosa de Andrade
Doutor em
Direito pela UFSC.
Psicólogo e
Jornalista.