Por meio de treinamento complexo, que estimula
simultaneamente diferentes habilidades motoras e cognitivas, pesquisadores da
USP e da Oregon Health and Science University conseguiram reverter as
alterações cerebrais associadas ao congelamento da marcha em pacientes com
doença em estágio avançado (imagem: divulgação)
Um dos sintomas mais incapacitantes
da doença de Parkinson é o chamado congelamento da marcha, que consiste na
interrupção súbita ou intermitente da caminhada, além da impossibilidade de
retomada dos movimentos de locomoção. Pesquisadores da Universidade de São
Paulo (USP) mostraram ser possível reduzir este problema por meio de um
protocolo de exercícios físicos bastante complexo, que estimula simultaneamente
diferentes habilidades motoras e cognitivas e foi descrito em artigo na
revista Movement Disorders.
O estudo, apoiado pela FAPESP, mostrou ainda
que o treinamento modifica áreas cerebrais relacionadas às alterações
fisiológicas do congelamento da marcha. O achado está associado, sobretudo, ao
efeito do treinamento no aumento da ativação de neurônios (plasticidade
cerebral) nas áreas relacionadas aos mecanismos que acarretam esse sintoma da
doença de Parkinson.
“Além do relato positivo dos
pacientes que realizaram o treinamento, os testes clínicos também apontaram uma
melhora significativa e clinicamente relevante de 60% de diminuição do
congelamento da marcha e 70% dos sintomas motores da doença. Outro resultado importante
do trabalho foi a restauração das áreas do cérebro diretamente relacionadas ao
problema. A plasticidade cerebral nessas áreas é um preditor na melhora do
congelamento da marcha”, diz Carla da Silva Batista,
pesquisadora na Escola de Educação Física e Esporte da USP e primeira autora do
artigo.
A
reativação das áreas do cérebro foi comprovada por meio de imagens de
ressonância magnética funcional. O protocolo é o primeiro a reduzir os sintomas
de congelamento da marcha – avaliado clinicamente de maneira objetiva – e a
registrar alterações nas áreas cerebrais relacionadas com a patofisiologia
desse sintoma.
A pesquisa é fruto do estudo de
pós-doutorado de Batista e parte da pesquisa foi realizada no Oregon Health and
Science University, nos Estados Unidos, por meio de uma bolsa de estágio no
exterior, também apoiada pela FAPESP.
De acordo
com a pesquisadora, a ativação da região cerebelar (relacionada com a
automaticidade da marcha) e da região mesencefálica (associada aos ajustes
posturais e à cognição) explica a reversão do congelamento da marcha após o
treinamento adaptado.
Motivo de queda
Embora não
tenha tratamento específico, o congelamento da marcha é um dos principais
motivos de queda entre portadores da doença de Parkinson. Junto com tremores e
dano cognitivo, o problema é um dos responsáveis pela perda de qualidade de
vida entre os indivíduos com a doença.
Estimativas
apontam que o congelamento da marcha afeta aproximadamente 26% dos pacientes em
estágio moderado da doença de Parkinson e 80% dos casos mais graves.
Geralmente, o problema acontece quando a pessoa está caminhando: o pé paralisa,
levando o indivíduo a quedas, fraturas e internações precoces. Outra forma
comum de congelamento de marcha ocorre quando a pessoa se levanta ou inicia uma
caminhada e ocorre a paralisia do pé, fazendo com que o indivíduo tropece, – ou
caminhe aos trancos – até que caia ou entre, repentinamente, em movimento
regular.
“Não se
sabe exatamente o que ocasiona o congelamento da marcha, apenas que existem
alguns fatores que podem ser preditores importantes, como o maior uso de
medicamentos para o Parkinson, o avanço da doença, declínio cognitivo severo,
além de fatores estressantes e a ansiedade”, diz.
Batista
afirma, no entanto, que existem casos de pacientes que, apesar de terem todas
as características preditoras descritas, não desenvolvem o problema.
Treinamento adaptado
O estudo
da USP dividiu 32 indivíduos nos estágios três e quatro da doença (existem
cinco no total) em dois grupos. O primeiro grupo, formado por 15 pessoas, realizou
a reabilitação tradicional (fisioterapia) e o segundo, com 17 indivíduos, fez o
treino específico e complexo proposto pelos pesquisadores. Durante 12 semanas
(num total de 36 sessões de treinos), os pesquisadores compararam os efeitos da
fisioterapia tradicional com os do treinamento físico com exercícios que
combinavam instabilidade, sobrecarga, coordenação motora e demanda cognitiva
simultaneamente.
“São
exercícios intensos e que precisam ser realizados concomitantemente para causar
complexidade. Isso exige muito do paciente e também requer confiança no
treinador, que invariavelmente terá que segurá-lo durante a execução da
atividade para evitar quedas”, diz Batista.
De acordo
com a pesquisadora, a complexidade do treinamento é necessária para que se
atinja o resultado desejado. “Sabe-se que exercícios de complexidade motora,
quando realizados de forma conjunta, tornam-se mais eficazes. Estudos em modelo
animal confirmam isso: eles promovem maior neuroplasticidade cerebral, como a
formação de neurônios e sinapses em regiões do cérebro, que era exatamente o
que queríamos atingir”, diz.
A avaliação da reversão do quadro nas
regiões do cérebro e o aumento da plasticidade dos pacientes foram medidos
graças a um modelo de análise de imagens de ressonância magnética, desenvolvido
anteriormente por pesquisadores da USP em parceria com a universidade
americana, publicado em 2017 na revista Scientific
Reports.
“Com o uso desse modelo, conseguiram
medir a atividade das regiões cerebrais afetadas pelo congelamento da marcha
antes e depois das 12 semanas de treinamento. Dessa forma, foi possível
comprovar a reversão do quadro para a plasticidade cerebral nas regiões
relacionadas com a patofisiologia desse problema”, diz Batista à Agência FAPESP.
No estudo,
não foi observada nenhuma melhora entre os participantes do grupo que realizou
o tratamento tradicional. “É importante ressaltar que o treinamento tradicional
não foi capaz de diminuir a gravidade do congelamento da marcha e nem de causar
alteração positiva nas áreas cerebrais.”
Exercícios combinados
A despeito
de a causa do congelamento da marcha ser ainda desconhecida, os pesquisadores
montaram o treinamento a partir da seleção de exercícios relacionados a
domínios e características preditoras ou comuns em indivíduos com o problema.
Dessa forma, o treinamento combinou quatro tipos de exercício que deveriam ser
realizados simultaneamente: sensório-motor, sobrecarga, coordenação motora e
demanda cognitiva.
Batista
ressalta que, geralmente, pacientes com congelamento da marcha apresentam perda
de noção espacial do corpo (propriocepção), de coordenação motora, de força
muscular, além da perda cognitiva. “Por isso, utilizamos exercícios de força e
coordenação sobre acessórios de instabilidade (bolas ou pranchas) que causam
desequilíbrio. Como a perda cognitiva é também um preditor do congelamento,
usamos tarefas cognitivas e exercícios de tarefa dupla, que demandam atenção
para ambas atividades ao mesmo tempo. Isso exigiu dos pacientes flexibilidade
mental ao mudar de uma tarefa para outra quando necessário”, diz.
O
fortalecimento foi o quarto domínio trabalhado nas sessões de treinamento, pois
a perda da força motora também está relacionada aos sintomas do Parkinson. “Os
exercícios propostos tinham sobrecarga. Não é um treinamento fácil. Ele exige
bastante do paciente, mas muitos voluntários do estudo se disseram desafiados
e, com o tempo, passaram a notar a melhora, o que os deixou mais motivados a
continuar o tratamento”, diz.
O artigo A Randomized, Controlled Trial of Exercise for Parkinsonian
Individuals With Freezing of Gait (doi: 10.1002/mds.28128), de
Carla Silvaâ?ÂÂBatista,
Andrea Cristina de Limaâ?ÂÂPardini, Mariana Penteado Nucci,
Daniel Boari Coelho, Alana Batista, Maria Elisa Pimentel Piemonte, Egberto Reis
Barbosa, Luis Augusto Teixeira, Daniel M. Corcos, Edson Amaro Jr, Fay B. Horak,
Carlos Ugrinowitsch, pode ser lido em https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/mds.28128 .
Maria Fernanda Ziegler
Agência FAPESP
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