Pacientes
em tratamento e especialistas no tema contam que a exclusão ainda faz parte da
rotina dos dependentes e que esse fator os torna mais vulneráveis e interfere
na recuperação
A morte de George
Floyd comoveu o mundo inteiro. Os joelhos no pescoço que asfixiaram o americano
são uma demonstração clara do racismo, que persiste até hoje na nossa
sociedade. O preconceito não atinge apenas os negros. Os dependentes químicos
também são estigmatizados e marginalizados. O descrédito não poupa ninguém, nem
mesmos os famosos. Walter Casagrande, estrela do futebol brasileiro, sempre
conta em entrevistas e no seu livro “Casagrande e seus demônios”, todo o
preconceito que cerca a vida dos dependentes químicos – chamados de viciados,
drogados e vagabundos – e a luta diária para evitar as recaídas.
A psiquiatra
Alessandra Diehl, que é vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos
Sobre o Álcool e Outras Drogas (ABEAD) e especialista em dependência química,
ressalta que a adicção é uma doença cerebral e não pode ser relacionada a uma
condição moral ou de falha de caráter. “A sociedade precisa reconhecer que a
ética do cuidado se caracteriza por um estilo de presença que põe no centro
sempre a pessoa mais frágil e vulnerável como os dependentes químicos e seus
familiares, principalmente aqueles que estão em situação de rua. Dentro deste
contexto, tanto a prevenção quanto o tratamento da dependência química implicam
no combate a toda forma de desigualdade, discriminação, indiferença, exclusão e
injustiça”, diz.
Para ela, é muito
triste que, mesmo depois de "limpo" há vários anos, pessoas como o
ex-jogador de futebol, Walter Casagrande, ainda seja chamado de "
drogado" nas redes socais. E ele não é o único: outras pessoas, como Fabio
Assumpção, são escrutinizadas em praça pública e sujeitas a toda forma de
zombaria e desonra. “Isto é psicofobia! Acho que tudo isto pode nos ensinar o
quanto este estigma afasta da busca de tratamento e nos mostra que as pessoas
podem passar por momentos muito difíceis da vida, mas elas podem superar seus
monstros, seus fantasmas, seus demônios. Eu particularmente acredito da
recuperação! Sim, ela existe e é libertadora", acrescenta Alessandra.
Hélio Harada Assanuma
é uma testemunha de que a psiquiatra tem razão. Ele se encontra em recuperação
há nove anos e seis meses. “Aceitei que tenho uma doença que precisa ser
tratada dia, a dia. Necessito de ajuda independente do tempo que eu esteja em
abstinência. Por eu aceitar ajuda de profissionais e companheiros que passaram
por esse mesmo problema, consegui recuperar a confiança da minha família, no
meu trabalho, e não percebo mais que as pessoas me olham com preconceito. Posso
frequentar reuniões de trabalho familiares, escolares e agir como uma pessoa
saudável. Sei que o olhar das pessoas em relação a mim só depende do meu
comportamento”, depõe.
Até reconquistar
todos que estavam a sua volta, Hélio esbarrou em muitas barreiras para ser
incluído novamente na sociedade. Ele conta que, quando era usuário de drogas, o
preconceito começava dentro de casa, por não conseguir concluir nada daquilo
que projetava. “Trabalhava no comércio com meus pais e, em razão da
instabilidade do meu comportamento, minhas ideias nunca eram incorporadas,
mesmo que fossem as melhores. Isso no núcleo familiar mais próximo. Já no mais
distante, se referiam a mim como o drogado, o usuário. A drogadição me levou
também para o mundo do crime e isso motivou minha exclusão do convívio social
com as pessoas, com os amigos dos meus irmãos e da minha família. E quando eu
era convidado para algum encontro, sempre me olhavam com desconfiança. Me senti
excluído do círculo de amizades saudáveis. Só era aceito nos grupos que
cometiam delitos. Daí percebi a necessidade de mudar. No trabalho, no momento
que perdi o controle da minha vida, as pessoas não queriam mais negociar comigo
por conta da drogadição. Só depois do tratamento as pessoas começaram a confiar
na minha palavra e agora tenho crédito. Mas o estigma persistiu por muito
tempo. Hoje, depois de um tempo de recuperação, os meus sobrinhos buscam se
aconselhar comigo, devido toda a experiência de vida que adquiri”, conta.
Preconceito contra
dependentes é histórico e está enraizado na sociedade
Fernanda
Lia de Paula Ramos, que também é vice-presidente da ABEAD, explica que a
humanidade sempre conviveu com problemas relacionados ao uso de álcool e outras
drogas. Antigamente, o modelo etiológico que predominava era o moral. Assim
sendo, um dependente de álcool ou de outras drogas era considerado um pecador
ou alguém com problemas de caráter, que merecia ser socialmente punido. Na
idade média, por exemplo, muitas pessoas alcoolizadas sofriam punições em
praças públicas.
Somente nos séculos
XVIII e XIX é que surgiram as ideias de perda do controle do beber, gerando uma
necessidade ao invés de uma escolha pessoal (Benjamin Rush) e a ideia de ser
uma doença (Thomas Trotter). Ainda no século XIX, o Magnus Huss a denominou de
“alcoolismo crônico”. Só no século XX, que o Jellinek definiu os diversos tipos
de padrões de beber problemático e, posteriormente, o Grifith Edwards
caracterizou os critérios da “Síndrome de Dependência do Álcool”.
“No entanto, mesmo
que, hoje em dia, a dependência química seja considerada um transtorno mental
descrito nos manuais DSM V e CID 10 e que se levem em conta as influências
biopsicossociais de tal patologia, ainda convivemos com muito estigma e
preconceito residuais. Infelizmente, muitos ainda agem sob a óptica de uma
visão moral, o que dificulta muito a busca por ajuda e tratamento por parte dos
indivíduos com tais problemas. Muitas vezes, as próprias famílias também se
sentem envergonhadas e demonstram dificuldade de buscar auxílio de profissionais
de saúde, como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, consultores, entre
outros. Outra repercussão bastante deletéria do preconceito é a dificuldade que
alguns dependentes químicos têm de reinserção social, mesmo após tratamento e
períodos longos de abstinência”, salienta Fernanda Ramos.
Para
o psicólogo Rogério Bosso, o fato dos dependentes químicos enfrentarem
dificuldades relacionais nos grupos sociais e no mercado de trabalho pode
estimular recaídas. “No início da recuperação as pessoas ainda estão muito
fragilizadas. Por passarem anos imersos nesse universo da dependência, mesmo
que já tenham encontrado um novo estilo de vida e passado pelo enfrentamento
dessa situação, ainda apresentam fragilidade emocional. É um processo delicado,
vagaroso e complexo”, atesta o psicólogo.
Mudança de vida é a
chave para evitar recaídas
Rogério
Bosso informa que a recuperação de permanência é multifacetada e mudanças de
vida devem ser feitas, como evitar pessoas e situações que possam ser um
gatilho para a recaída. A criação de novos vínculos para que possa se afastar
das pessoas que estimulavam o consumo de substâncias é um dos caminhos para
manter o quadro de abstinência, na opinião do psicólogo.
“A
dependência, muitas vezes, leva a ruptura de vínculos, principalmente na esfera
familiar. E, quando estão em tratamento, precisam de apoio para refazer e
fortalecer esses laços. Há um julgamento e um preconceito muito grande em torno
dos dependentes, quando, na verdade, o que eles precisam é de ajuda. Com esse
fortalecimento das relações, os dependentes melhoram a autoestima e começam a
ser novamente incluídos na sociedade e no mercado de trabalho, o que ajuda na
reabilitação e no controle da abstinência. A ajuda para esse resgate
profissional, num local protetivo, com pessoas que contribuam para que os
dependentes continuem os tratamentos e fiquem longe do uso das drogas, também é
muito importante para a recuperação”, destaca Bosso.
Elaine
Camarini, vice-presidente da entidade Faces e Vozes da Recuperação no Brasil,
apoia a reabilitação e prega a promoção de políticas relacionadas à ciência,
saúde, compaixão e direitos humanos no tratamento dos dependentes. “Nossos
apoiadores acreditam que quando se elimina o estigma, a discriminação e se
removem as barreiras para o tratamento, mais brasileiros terão vida saudável e
recuperação a longo prazo. Trabalhamos para assegurar que as políticas públicas
reflitam a esperança e a resiliência encontrados nas comunidades de
recuperação. E trabalhamos para ajudar os outros por meio de uma aproximação
compreensiva, que resolva a crise de adicção no Brasil”, finaliza.
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