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quarta-feira, 8 de julho de 2020

Preconceitos e estigmas atrapalham a reabilitação de dependentes químicos



Pacientes em tratamento e especialistas no tema contam que a exclusão ainda faz parte da rotina dos dependentes e que esse fator os torna mais vulneráveis e interfere na recuperação


A morte de George Floyd comoveu o mundo inteiro. Os joelhos no pescoço que asfixiaram o americano são uma demonstração clara do racismo, que persiste até hoje na nossa sociedade. O preconceito não atinge apenas os negros. Os dependentes químicos também são estigmatizados e marginalizados. O descrédito não poupa ninguém, nem mesmos os famosos. Walter Casagrande, estrela do futebol brasileiro, sempre conta em entrevistas e no seu livro “Casagrande e seus demônios”, todo o preconceito que cerca a vida dos dependentes químicos – chamados de viciados, drogados e vagabundos – e a luta diária para evitar as recaídas.

A psiquiatra Alessandra Diehl, que é vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos Sobre o Álcool e Outras Drogas (ABEAD) e especialista em dependência química, ressalta que a adicção é uma doença cerebral e não pode ser relacionada a uma condição moral ou de falha de caráter. “A sociedade precisa reconhecer que a ética do cuidado se caracteriza por um estilo de presença que põe no centro sempre a pessoa mais frágil e vulnerável como os dependentes químicos e seus familiares, principalmente aqueles que estão em situação de rua. Dentro deste contexto, tanto a prevenção quanto o tratamento da dependência química implicam no combate a toda forma de desigualdade, discriminação, indiferença, exclusão e injustiça”, diz.

Para ela, é muito triste que, mesmo depois de "limpo" há vários anos, pessoas como o ex-jogador de futebol, Walter Casagrande, ainda seja chamado de " drogado" nas redes socais. E ele não é o único: outras pessoas, como Fabio Assumpção, são escrutinizadas em praça pública e sujeitas a toda forma de zombaria e desonra. “Isto é psicofobia! Acho que tudo isto pode nos ensinar o quanto este estigma afasta da busca de tratamento e nos mostra que as pessoas podem passar por momentos muito difíceis da vida, mas elas podem superar seus monstros, seus fantasmas, seus demônios. Eu particularmente acredito da recuperação! Sim, ela existe e é libertadora", acrescenta Alessandra.

Hélio Harada Assanuma é uma testemunha de que a psiquiatra tem razão. Ele se encontra em recuperação há nove anos e seis meses. “Aceitei que tenho uma doença que precisa ser tratada dia, a dia. Necessito de ajuda independente do tempo que eu esteja em abstinência. Por eu aceitar ajuda de profissionais e companheiros que passaram por esse mesmo problema, consegui recuperar a confiança da minha família, no meu trabalho, e não percebo mais que as pessoas me olham com preconceito. Posso frequentar reuniões de trabalho familiares, escolares e agir como uma pessoa saudável. Sei que o olhar das pessoas em relação a mim só depende do meu comportamento”, depõe.

Até reconquistar todos que estavam a sua volta, Hélio esbarrou em muitas barreiras para ser incluído novamente na sociedade. Ele conta que, quando era usuário de drogas, o preconceito começava dentro de casa, por não conseguir concluir nada daquilo que projetava. “Trabalhava no comércio com meus pais e, em razão da instabilidade do meu comportamento, minhas ideias nunca eram incorporadas, mesmo que fossem as melhores. Isso no núcleo familiar mais próximo. Já no mais distante, se referiam a mim como o drogado, o usuário. A drogadição me levou também para o mundo do crime e isso motivou minha exclusão do convívio social com as pessoas, com os amigos dos meus irmãos e da minha família. E quando eu era convidado para algum encontro, sempre me olhavam com desconfiança. Me senti excluído do círculo de amizades saudáveis. Só era aceito nos grupos que cometiam delitos. Daí percebi a necessidade de mudar. No trabalho, no momento que perdi o controle da minha vida, as pessoas não queriam mais negociar comigo por conta da drogadição. Só depois do tratamento as pessoas começaram a confiar na minha palavra e agora tenho crédito. Mas o estigma persistiu por muito tempo. Hoje, depois de um tempo de recuperação, os meus sobrinhos buscam se aconselhar comigo, devido toda a experiência de vida que adquiri”, conta.


Preconceito contra dependentes é histórico e está enraizado na sociedade

Fernanda Lia de Paula Ramos, que também é vice-presidente da ABEAD, explica que a humanidade sempre conviveu com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Antigamente, o modelo etiológico que predominava era o moral. Assim sendo, um dependente de álcool ou de outras drogas era considerado um pecador ou alguém com problemas de caráter, que merecia ser socialmente punido. Na idade média, por exemplo, muitas pessoas alcoolizadas sofriam punições em praças públicas.

Somente nos séculos XVIII e XIX é que surgiram as ideias de perda do controle do beber, gerando uma necessidade ao invés de uma escolha pessoal (Benjamin Rush) e a ideia de ser uma doença (Thomas Trotter). Ainda no século XIX, o Magnus Huss a denominou de “alcoolismo crônico”. Só no século XX, que o Jellinek definiu os diversos tipos de padrões de beber problemático e, posteriormente, o Grifith Edwards caracterizou os critérios da “Síndrome de Dependência do Álcool”.

“No entanto, mesmo que, hoje em dia, a dependência química seja considerada um transtorno mental descrito nos manuais DSM V e CID 10 e que se levem em conta as influências biopsicossociais de tal patologia, ainda convivemos com muito estigma e preconceito residuais. Infelizmente, muitos ainda agem sob a óptica de uma visão moral, o que dificulta muito a busca por ajuda e tratamento por parte dos indivíduos com tais problemas. Muitas vezes, as próprias famílias também se sentem envergonhadas e demonstram dificuldade de buscar auxílio de profissionais de saúde, como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, consultores, entre outros. Outra repercussão bastante deletéria do preconceito é a dificuldade que alguns dependentes químicos têm de reinserção social, mesmo após tratamento e períodos longos de abstinência”, salienta Fernanda Ramos.

Para o psicólogo Rogério Bosso, o fato dos dependentes químicos enfrentarem dificuldades relacionais nos grupos sociais e no mercado de trabalho pode estimular recaídas. “No início da recuperação as pessoas ainda estão muito fragilizadas. Por passarem anos imersos nesse universo da dependência, mesmo que já tenham encontrado um novo estilo de vida e passado pelo enfrentamento dessa situação, ainda apresentam fragilidade emocional. É um processo delicado, vagaroso e complexo”, atesta o psicólogo.


Mudança de vida é a chave para evitar recaídas

Rogério Bosso informa que a recuperação de permanência é multifacetada e mudanças de vida devem ser feitas, como evitar pessoas e situações que possam ser um gatilho para a recaída. A criação de novos vínculos para que possa se afastar das pessoas que estimulavam o consumo de substâncias é um dos caminhos para manter o quadro de abstinência, na opinião do psicólogo. 

“A dependência, muitas vezes, leva a ruptura de vínculos, principalmente na esfera familiar. E, quando estão em tratamento, precisam de apoio para refazer e fortalecer esses laços. Há um julgamento e um preconceito muito grande em torno dos dependentes, quando, na verdade, o que eles precisam é de ajuda. Com esse fortalecimento das relações, os dependentes melhoram a autoestima e começam a ser novamente incluídos na sociedade e no mercado de trabalho, o que ajuda na reabilitação e no controle da abstinência. A ajuda para esse resgate profissional, num local protetivo, com pessoas que contribuam para que os dependentes continuem os tratamentos e fiquem longe do uso das drogas, também é muito importante para a recuperação”, destaca Bosso.

Elaine Camarini, vice-presidente da entidade Faces e Vozes da Recuperação no Brasil, apoia a reabilitação e prega a promoção de políticas relacionadas à ciência, saúde, compaixão e direitos humanos no tratamento dos dependentes. “Nossos apoiadores acreditam que quando se elimina o estigma, a discriminação e se removem as barreiras para o tratamento, mais brasileiros terão vida saudável e recuperação a longo prazo. Trabalhamos para assegurar que as políticas públicas reflitam a esperança e a resiliência encontrados nas comunidades de recuperação. E trabalhamos para ajudar os outros por meio de uma aproximação compreensiva, que resolva a crise de adicção no Brasil”, finaliza. 



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