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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O coreano “Parasita” e as enchentes em São Paulo, escreve Roberto Livianu


No domingo, ao tempo em que a chuva torrencial e contínua engolia São Paulo, deixando-a literalmente sob o caos do alagamento na 2ª feira, em Los Angeles consagrava-se ineditamente uma película não falada em inglês, dirigida pelo sul coreano Bong Joon-Ho –maior vencedora da noite de entrega do Oscar– desbancando filmes estupendos como “Coringa”, “O Irlandês” e “Era uma Vez em Hollywood”.

Bong soube iluminar com maestria as angústias e ambições da família Ki Taek e sua busca pela ascensão para tirá-los do submundo, do porão humilhante e indigno em que sobreviviam, da desonra do desemprego, da miséria existencial desprovida de saneamento básico, dependendo exclusivamente da sorte para não serem atingidos pelo jato descontrolado de urina do bêbado que passava sempre pelo andar térreo da rua.

Paralelamente à evolução da astuciosa e progressiva infiltração na mansão dos Park, urdida nas névoas dos segredos e mentiras da cumplicidade familiar rumo ao sonhado andar de cima, onde se odiava o odor da miséria, uma cena dramática do filme retrata um dilúvio sul-coreano chamado de bênção pelos Park e sentido como terrível e destruidor para os Ki Taek, coincidente ao dilúvio real paulistano, que desabrigou famílias, agudizou misérias, levou sofás, camas, geladeiras, roupas, alimentos e registros de histórias de vida invisíveis; interrompeu o fornecimento de energia, fechou fóruns e lojas. E até permitiu saqueamentos de veículos abandonados nas águas. Mas também fez heróis que usaram suas motos para salvar vidas.

As cenas fortes e bem tramadas de “Parasita” levaram a Academia a se curvar e reconhecer ineditamente o inovador cinema asiático, mas, ao mesmo tempo, deram importância protagonista ao grito dos excluídos visibilizado por Bong, o grito dos mais frágeis, ocupantes da base da pirâmide da desigualdade social, indagando de forma ficcional à plateia: quem seriam os verdadeiros parasitas? Os Ki Taek ou os Park?

Em São Paulo, em que segundo divulga hoje a Secretaria de Direitos Humanos, chega a 14 anos a diferença da expectativa de vida entre quem nasce em São Miguel Paulista (71) e no Alto de Pinheiros (85), vivemos também os dramas sociais do desemprego, da falta de moradia, de saneamento básico, de contrastes entre a riqueza e a miséria, da falta de investimento da verba pública em obras antienchente, da corrupção que anda de mãos dadas e é retroalimentada pela desigualdade social.

A Coréia do Sul de Bong Joon-Ho, que há 30 anos era um país dominado pela corrupção sistêmica, virou a própria mesa, e hoje ocupa posição de destaque no mundo neste quesito, punindo com exemplaridade, tanto a corrupção privada, em casos como a gigante automobilística Hyundai, como a corrupção pública, condenando por este crime com naturalidade, sem abalos ou polarizações infinitas, a 24 anos de prisão, uma outra Park –Park Geun-hye, ex-presidente da República.
A estratégia adotada foi a da revolução pela educação em período integral, da qual o brilhante cineasta Bong Joon-ho é filho. A frieza e a insensibilidade dos Park de “Parasita”, vivendo em sua bolha de riqueza, alimentou o monstro violento do rancor. Mesmo assim, ela sempre existiu e sempre existirá lá, aqui e em todos os lugares, já que a desigualdade remonta às origens do homem e jamais será extinta, assim como a corrupção, igualmente milenar. Elas podem e devem ser controladas. A Coreia do Sul hoje tem a corrupção sob controle.

O que é diferente é o valor e o respeito que se dedica aos pilares democráticos, às políticas públicas, às formas de enfrentar tais dilemas. Como promover o engajamento de uma sociedade individualista e com afetos e solidariedade decrescentes é um grande desafio.

Bong tirou os excluídos da invisibilidade nossa de cada dia para nos alertar que não existe vida digna possível enquanto seres humanos forem constrangidos a nadar nas águas do esgoto, vivendo sob jatos humilhantes de urina. Os desafios devem ser assumidos e encarados como um problema de todos. A enchente paulistana dá cores vivas e reais aos alertas de Bong e não adianta querer jogar a culpa em São Pedro.




Roberto Livianu 


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