Gosto de quem conta causo. Eu
mesmo não sou bom contador. Mas, deste que me frequenta a memória, vou dizer
como aconteceu: o garçom, com o queixo descansado no punho, apoiado no balcão,
dava cochilos em pé. Oito clientes, todos homens, reuniam-se na única mesa
ocupada.
Dois quietos, pensando longe.
Seis falavam alto, discutiam. O que parecia argumento arremedava convicção. Era
tarde da noite, mas o restaurante, que declarava tolerar a vontade de não ir
embora de qualquer cliente, estava cumprindo com a fama de aguentar qualquer
estado que fosse.
Eu queria tomar sopa, entrei. Não
cheguei a pedir. Três ou quatro passos na casa e fui chamado. A voz arrastou
meu nome, mas o tom era de intimação. Dei-me por distraído, decidido a não
ouvir. Agora!, decidi em vão. Tive que escutar, porque, na segunda vez, a voz
veio insistente.
Sorri para o grupo, cumprimentei
alegre, com a esperança de me safar. O sujeito foi imperativo: “Sentaqui”. A
esperança depereceu. Cabe explicar: político de interior é assim, não pode
recusar convite; é dever seu fazer-se sempre à disposição. Entre relutante e
conformado, sentei.
Os dois que se punham quietos
seguiram “viajando”. Dos demais, me veio um alvoroço de vozes em minha direção.
Queriam que eu opinasse sobre algo que não compreendi desde logo. Fiquei em
silêncio, e fui deslindando as falas enquanto era tratado como quem fosse
julgar um caso.
Tudo o que me movia era uma baita
fome. Algo que me saciasse e já me iria embora. Não queria desatender as
pessoas. Ademais, confesso, pessoas são eleitores. Contudo, àquela altura, não
era de ouvir coisa nenhuma, menos ainda de arrematar conversa fiada. Mas não
escapei.
Em segunda esperança, tentei meia
sorte. Levantei a mão. O garçom, recomposto, deu-me cuidado. Prometeu-me
salvação da fome, garantiu-me o prato de sopa. Gritei – tinha que gritar – que
ouviria a todos. Empolei voz de autoridade: “falem, penso enquanto como, ao fim
concluo”.
O garçom logo me serviu. O meu
apetite saboreava a sopa e eu meneava a cabeça, ar compenetrado, tentava não
adiantar voto, concordando um pouco com cada qual. Ainda falavam seis, dois
dizendo nada; ou... dizendo de si para consigo. Logo, logo, me situei. Peguei a
compreender.
Estavam no restaurante; estariam
sempre no restaurante. O restaurante era o lugar necessário no caminho dos seus
dias. Chegavam logo que desse ao restaurante; faziam gosto do restaurante;
passavam da hora no restaurante. Por que não estavam em casa? Por que não
queriam ir embora?
Eram essas as suas questões
relevantes de mundo. Não que filosofassem a vida do mesmo modo; mas de fato
tinham um denominador comum. Estavam de acordo sobre a pergunta que
consideravam desdobrada em duas: porque não querer estar em casa era diferente
de não querer ir embora.
Conseguiram explicar; consegui
entender: tratava-se de mais do que ir ou não ir para casa. Não estavam em
casa, mas não era porque não gostassem de estar em casa. O busílis era sobre
não querer ir embora, isso era bem outra coisa. Ou... essa era a coisa
assuntada. Não a deslindavam.
Três defendiam que era por
respeito à mulher: discutiriam, fariam sofrer a mãe de seus filhos. Uma
canalhice! Melhor deixar para mais tarde. Os demais falantes declaravam
covardia, de todos. Se fossem, um dia teriam que enfrentar o assunto do
desgosto de ir. Então, restavam não indo.
Explicitei circunspecção diante
de tema tão existencial. Essa não seria uma indagação da mesa, mas a dúvida da
humanidade. Perguntei, não obstante, se não acabavam, de todo jeito, a noite em
casa. Olharam-me como se olha para a ingenuidade: “Noite alta, bêbado, mulher
não fala”.
Afetei espanto: “Por que não
fala!?” Fui abraçado. Então me disseram com candura paternal que toda mulher
sabe que conversar com marido na madrugada, sonolento, bêbado, não adianta
nada. Tentam, percebem que o resultado é triste, desistem: “É assim, todo mundo
sabe”.
Então, sem mais, um dos senhores
que se quedavam em compenetrada quietude ergueu-se e sentenciou: “Não era nada
disso”, afirmou, “só não sabem o que dizer porque não conhecem a própria
mulher. Ninguém sabe o que quer uma mulher”. Olhou para o rapaz boquiaberto ao
seu lado:
“A tua mãe: eu não sei quem é;
durmo com ela há trinta anos, mas não a conheço... não sei o que pensa.
Namoramos, casamos... de lá pra cá... não sabia... não sei... Como é que vou
conversar?” Olhou para o garçom, que recolhia meu prato: “Dá mais uma”.
Silêncio geral.
Léo Rosa de Andrade - Doutor
em Direito pela UFSC. Psicólogo e Jornalista.
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