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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

CONCLUSÕES DE UM MARIDO BÊBADO


Gosto de quem conta causo. Eu mesmo não sou bom contador. Mas, deste que me frequenta a memória, vou dizer como aconteceu: o garçom, com o queixo descansado no punho, apoiado no balcão, dava cochilos em pé. Oito clientes, todos homens, reuniam-se na única mesa ocupada.

Dois quietos, pensando longe. Seis falavam alto, discutiam. O que parecia argumento arremedava convicção. Era tarde da noite, mas o restaurante, que declarava tolerar a vontade de não ir embora de qualquer cliente, estava cumprindo com a fama de aguentar qualquer estado que fosse.

Eu queria tomar sopa, entrei. Não cheguei a pedir. Três ou quatro passos na casa e fui chamado. A voz arrastou meu nome, mas o tom era de intimação. Dei-me por distraído, decidido a não ouvir. Agora!, decidi em vão. Tive que escutar, porque, na segunda vez, a voz veio insistente.

Sorri para o grupo, cumprimentei alegre, com a esperança de me safar. O sujeito foi imperativo: “Sentaqui”. A esperança depereceu. Cabe explicar: político de interior é assim, não pode recusar convite; é dever seu fazer-se sempre à disposição. Entre relutante e conformado, sentei.

Os dois que se punham quietos seguiram “viajando”. Dos demais, me veio um alvoroço de vozes em minha direção. Queriam que eu opinasse sobre algo que não compreendi desde logo. Fiquei em silêncio, e fui deslindando as falas enquanto era tratado como quem fosse julgar um caso.

Tudo o que me movia era uma baita fome. Algo que me saciasse e já me iria embora. Não queria desatender as pessoas. Ademais, confesso, pessoas são eleitores. Contudo, àquela altura, não era de ouvir coisa nenhuma, menos ainda de arrematar conversa fiada. Mas não escapei.

Em segunda esperança, tentei meia sorte. Levantei a mão. O garçom, recomposto, deu-me cuidado. Prometeu-me salvação da fome, garantiu-me o prato de sopa. Gritei – tinha que gritar – que ouviria a todos. Empolei voz de autoridade: “falem, penso enquanto como, ao fim concluo”.

O garçom logo me serviu. O meu apetite saboreava a sopa e eu meneava a cabeça, ar compenetrado, tentava não adiantar voto, concordando um pouco com cada qual. Ainda falavam seis, dois dizendo nada; ou... dizendo de si para consigo. Logo, logo, me situei. Peguei a compreender.

Estavam no restaurante; estariam sempre no restaurante. O restaurante era o lugar necessário no caminho dos seus dias. Chegavam logo que desse ao restaurante; faziam gosto do restaurante; passavam da hora no restaurante. Por que não estavam em casa? Por que não queriam ir embora?

Eram essas as suas questões relevantes de mundo. Não que filosofassem a vida do mesmo modo; mas de fato tinham um denominador comum. Estavam de acordo sobre a pergunta que consideravam desdobrada em duas: porque não querer estar em casa era diferente de não querer ir embora.

Conseguiram explicar; consegui entender: tratava-se de mais do que ir ou não ir para casa. Não estavam em casa, mas não era porque não gostassem de estar em casa. O busílis era sobre não querer ir embora, isso era bem outra coisa. Ou... essa era a coisa assuntada. Não a deslindavam.

Três defendiam que era por respeito à mulher: discutiriam, fariam sofrer a mãe de seus filhos. Uma canalhice! Melhor deixar para mais tarde. Os demais falantes declaravam covardia, de todos. Se fossem, um dia teriam que enfrentar o assunto do desgosto de ir. Então, restavam não indo.

Explicitei circunspecção diante de tema tão existencial. Essa não seria uma indagação da mesa, mas a dúvida da humanidade. Perguntei, não obstante, se não acabavam, de todo jeito, a noite em casa. Olharam-me como se olha para a ingenuidade: “Noite alta, bêbado, mulher não fala”.

Afetei espanto: “Por que não fala!?” Fui abraçado. Então me disseram com candura paternal que toda mulher sabe que conversar com marido na madrugada, sonolento, bêbado, não adianta nada. Tentam, percebem que o resultado é triste, desistem: “É assim, todo mundo sabe”.

Então, sem mais, um dos senhores que se quedavam em compenetrada quietude ergueu-se e sentenciou: “Não era nada disso”, afirmou, “só não sabem o que dizer porque não conhecem a própria mulher. Ninguém sabe o que quer uma mulher”. Olhou para o rapaz boquiaberto ao seu lado:

“A tua mãe: eu não sei quem é; durmo com ela há trinta anos, mas não a conheço... não sei o que pensa. Namoramos, casamos... de lá pra cá... não sabia... não sei... Como é que vou conversar?” Olhou para o garçom, que recolhia meu prato: “Dá mais uma”. Silêncio geral.



Léo Rosa de Andrade - Doutor em Direito pela UFSC. Psicólogo e Jornalista.

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