Cientistas da USP trabalham para “limpar” água contaminada. Foto: Henrique Fontes/IQSC |
Você sabia que a
água que você consome em sua casa pode não estar totalmente livre de impurezas?
Esse risco existe quando produtos que utilizamos no dia a dia, como remédios,
protetores solares e itens de higiene pessoal são encontrados em rios que
abastecem municípios. As estações de tratamento de água não conseguem remover
completamente esses compostos, já que não possuem equipamentos apropriados para
a tarefa. Batizados de contaminantes emergentes, essas substâncias desafiam há
anos centenas de cientistas brasileiros a buscarem soluções eficientes e a
entenderem os impactos que elas podem causar ao meio ambiente e aos seres
vivos.
Segundo o
professor Eduardo Bessa Azevedo, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC)
da USP, o Brasil ainda não possui uma legislação que determine quantidades
seguras desses contaminantes na água. “São substâncias encontradas em pequenas
concentrações, mas que, se consumidas por anos, podem trazer algum risco”,
alerta. Estudos indicam que o lançamento não controlado de fármacos nos corpos
d’água pode, por exemplo, ocasionar o desenvolvimento de microrganismos
resistentes a antibióticos. Caso haja a ingestão
dessa água contaminada, seres humanos e animais
estão sujeitos a efeitos como disfunções no sistema endócrino e reprodutivo, além de distúrbios
metabólicos. Diversos compostos químicos são capazes de interferir no
metabolismo, entre eles, destacam-se os que estão presentes em hormônios,
anti-inflamatórios, antidepressivos, hidrocarbonetos poliaromáticos e pesticidas.
A falta de
efetividade no combate aos contaminantes emergentes preocupa os cientistas e
acende o sinal de alerta na sociedade. “As estações de tratamento d’água
(ETAs), basicamente, trabalham para retirar sua turbidez e torná-la potável.
Elas têm uma capacidade limitada de remoção desses contaminantes, pois foram
projetas numa época em que não existia essa demanda”, explica o docente. De
acordo com o Instituto Trata Brasil, quase 35 milhões de brasileiros
não têm acesso ao abastecimento de água tratada. Em 2016, uma em
cada setemulheres do país não tinha acesso à água, enquanto 7,5% das
crianças e dos adolescentes não possuíam água filtrada ou vinda de fonte
segura.
A ciência entra
em cena – Há algumas décadas, pesquisas têm
chamado a atenção sobre os possíveis danos que os contaminantes emergentes
podem causar aos recursos hídricos, fato que impulsionou o interesse da
comunidade científica em busca de soluções para identificação, monitoramento e
remoção dessas substâncias. No IQSC, o Laboratório de Desenvolvimento de
Tecnologias Ambientais (LDTAmb) está envolvido nesse desafio, criando
alternativas promissoras. “Diferentemente das tecnologias tradicionais, as
quais amenizam o problema da poluição, mas não o resolvem, as pesquisas
desenvolvidas em nosso laboratório se preocupam em realmente destruir os
contaminantes. Não basta reduzirmos a concentração de determinada substância se
ela ainda continua com sua função biológica ativa, podendo trazer algum
perigo”, afirma o professor Eduardo, que coordena o LDTAmb.
Uma das
pesquisas desenvolvidas no Laboratório da USP é a de Maykel Marchetti,
doutorando do IQSC. Após realizar um levantamento, o pesquisador descobriu
quais eram os fármacos mais prescritos e consumidos no Brasil e, a partir dessa
relação, determinou as quatro substâncias químicas mais prováveis de serem
encontradas na água. São elas: paracetamol (analgésico), cetoprofeno
(anti-inflamatório), diclofenaco (anti-inflamatório) e o ácido salicílico
(utilizado no tratamento da acne). Com essas informações em mãos, Maykel
desenvolveu um método analítico capaz de detectar e quantificar,
simultaneamente, todos esses quatro fármacos em água e aplicou uma técnica para
degradá-los, que funciona através de uma reação química envolvendo peróxido de
hidrogênio (água oxigenada), oxalato de ferro e luz (LED). “Essa técnica nos
permitiu fazer o tratamento da água em condições semelhantes às adotadas nas
ETAs”, explica.
No laboratório,
o pesquisador testou o procedimento de degradação proposto. Após dissolver os quatro
contaminantes em água, adicionou à solução o oxalato de ferro e o peróxido de
hidrogênio. Em seguida, a água foi colocada dentro de um reator com LEDs, onde
ficou por aproximadamente 25 minutos reagindo “Nós utilizamos uma concentração
de contaminantes até um milhão de vezes maior do que a encontrada nas águas e,
mesmo assim, atingimos uma porcentagem de 95% de degradação. No entanto, vale
ressaltar que isso não significa que eles foram totalmente removidos, mas sim
transformados em outras substâncias que precisam ter sua toxicidade analisada”,
afirma o doutorando, que apresentou seu trabalho no 47º
Congresso Mundial de Química da União
Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC), que acontece em Paris, entre
os dias 5 e 12 de julho.
Para validar seu
método de detecção e quantificação dos fármacos, Maykel estudou as
águas superficiais de São Carlos, responsáveis pela metade do abastecimento do
município, por meio do córrego Espraiado e do rio Ribeirão Feijão. Durante um
ano, o pesquisador coletou amostras mensais de água dos pontos de entrada e
saída da estação de tratamento da cidade e, felizmente, não foi identificado
nenhum dos quatro fármacos pesquisados. Contudo, um estudo realizado pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em 2014 revelou, após três anos de
análises, a presença de cafeína, paracetamol, atenolol e dos hormônios estrona
e 17-β-estradiol no Rio Monjolinho. Embora ele não seja utilizado para
abastecimento público, os pesquisadores se preocupam com a conservação dos
recursos hídricos e a proteção da vida aquática.
Planeta afetado
- Os contaminantes emergentes já se tornaram um
problema global, tendo sido encontrados em dezenas de países, inclusive no
Brasil. Em Campinas (SP), amostras de ácido salicílico, paracetamol e cafeína
já foram identificadas no Córrego Anhumas. Além de atuar como um indicador de
contaminação por fármacos, a cafeína pode causar, em altas concentrações,
problemas aos peixes, como a diminuição da capacidade de locomoção e a morte de
embriões. Outra substância encontrada em águas brasileiras foi o diclofenaco,
confirmada no Rio Pinheiros, na capital paulista, e no Rio Paraíba, que banha o
Estado Paraibano. Em âmbito internacional, rios de países como Estados Unidos,
Espanha, Suíça e Costa Rica já sofrem com a presença desses contaminantes.
O descuido
quanto ao descarte irregular de remédios é uma das principais causas do
aparecimento desse tipo de contaminante na água. Despejar produtos vencidos na
pia ou em vasos sanitários, por exemplo, faz com que as substâncias cheguem até
rios e mananciais. Embora a mudança de alguns hábitos seja essencial para não
acentuar ainda mais o problema, causas naturais também contribuem para essa
contaminação. Afinal, parte do remédio que tomamos não é metabolizada pelo
nosso organismo, sendo eliminada via urina, fezes ou suor. Situação semelhante
ocorre quando tomamos banho após a utilização de protetor solar, ocasião em que
o produto é eliminado pelo ralo, podendo chegar tanto a águas superficiais como
subterrâneas. Por sua vez, fármacos utilizados na agropecuária também
são capazes de contaminar os recursos hídricos.
Esquema mostra
possíveis rotas dos contaminantes emergentes no meio ambiente. Arte: Maykel
Marchetti, adaptado de Thomas Heberer
Segundo a última
Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, realiza pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), 71,8% dos municípios brasileiros não
apresentavam políticas de saneamento e, em 48,7% deles, não havia órgão
fiscalizador da qualidade da água.
Já de acordo com o Atlas
Esgotos: Despoluição de Bacias Hidrográficas, divulgado
em 2017 pela Agência Nacional das Águas
(ANA), menos da metade dos esgotos do país é coletada e tratada e apenas
39% da carga orgânica gerada diariamente no Brasil é removida pelas estações de
tratamento de esgoto antes dos efluentes serem lançados em rios.
Fazendo o dever
de casa - Ações para melhorar a qualidade da água
não podem se restringir apenas aos cientistas. Segundo o Instituto Trata
Brasil, mais de 3,5 milhões de brasileiros, nas 100 maiores cidades
do país, despejam esgoto irregularmente, mesmo tendo acesso a redes
coletoras. Pequenas atitudes, se feitas em grande escala, podem ajudar a
evitar uma contaminação ainda maior.
Segundo o
professor Eduardo Bessa Azevedo, comportamentos que contribuam para a manutenção
dos recursos naturais devem começar dentro de nossas casas. Afinal, não existe
o “jogar fora”, pois, na verdade, tudo o que descartamos sempre irá para algum
lugar, podendo gerar grandes prejuízos se feito de maneira impensada. Por isso,
o docente faz um pedido: “Não descarte produtos em locais incorretos e evite
usar água para o que não for necessário, como lavar a calçada. Se puder fazer
limpeza a seco, priorize-a. As pessoas pensam que atitudes isoladas não trarão
nenhuma melhora, mas imagine se todos resolvessem ajudar”.
Preocupados com
o futuro de nossa água, os cientistas da USP continuarão em busca de novas
alternativas para combater os contaminantes emergentes e, sem dúvida,
motivações não irão faltar. “É uma questão de saúde pública, e trabalhar no
desenvolvimento de soluções para o problema nos dá a certeza de que estamos
fazendo o nosso papel”, finaliza Maykel.
Henrique Fontes – Assessoria de Comunicação do IQSC/USP
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