Outro
dia, meu filho abordou-me. Queria saber por que as pessoas comentam situações
que contrariam a justiça, a razão e a verdade, com um reticente “Pois é...”.
Lembrei-me de algo semelhante, que ouvi há muitos anos: “Certas coisas só
acontecem porque, quando acontecem, a única reação das pessoas é dizer que
essas coisas acontecem”.
Ou se limitam a um desanimado “Pois
é...”.
A
audiência de custódia é uma dessas criaturas da irrazão. Foi concebida pelo CNJ
com o intuito de permitir ao juiz um contato direto e imediato com o preso em
flagrante para decidir se ele deve permanecer preso. Como muito bem pergunta o
Dr. Marcelo Rocha Monteiro (1), o que pode o juiz intuir da mera observação do
sujeito à sua frente? Por que, estando o sujeito à sua frente, é vedado ao
magistrado indagar o motivo de ele ali estar? Por que não promover, logo, uma
audiência de instrução? Pois é...
Recentemente,
em Porto Alegre, uma importante operação apreendeu 4,6 toneladas de maconha e
prendeu meia dúzia de quadrilheiros. Na audiência de custódia, alguns
apresentavam lesões corporais leves, de distintas naturezas e as atribuíam aos
policiais. Estes, por seu turno, informavam que os presos se haviam machucado
ao tentar fugir pelo telhado. A juíza, em vista disso, mandou soltar os seis,
mas o fez impondo rigorosas condições: dormirem sempre em casa, não saírem da
comarca, se dedicarem a atividade honesta e se apresentarem mensalmente em
juízo para um relato sobre o que estiverem fazendo na vida. Não ria que o
assunto é sério.
Algumas
horas depois, essa decisão foi revogada por outra magistrada. E até o momento
em que escrevo, nossos policiais – Sísifos com colete à prova de bala –
dedicam-se a enxugar o gelo da criminalidade rueira, levando tiro e morrendo
para recapturar os mesmos bandidos que haviam prendido e levado à presença da
autoridade judiciária. Pois é...
Antes
de sentar poeira sobre tão exóticos acontecimentos, a bem conhecida Associação
dos Juízes para a Democracia (AJD) saltou em defesa da juíza da primeira
decisão (2). Não ria que o assunto é sério. Dessa manifestação, deduzo que a
autora da segunda decisão, mandando recapturar os bandidos, cometeu um ato que
a desqualifica perante a entidade, ou seja, perante o conceito de democracia
dos tais juízes pela democracia.
Para
o bom entendedor, metade dos adjetivos que a AJD reserva a si em seu site
basta. Ali se exibe o peito estufado pela autoatribuída superioridade moral da
esquerda, sempre impugnada pelos fatos. Ali está um dos muitos organismos com
que esta se infiltra e aparelha de modo desastroso as instituições nacionais. A
própria associação, ativa na campanha Lula Livre (3), exalta sua estreita
proximidade, com os desordeiros e, não raro, delinquentes movimentos sociais. E
é exatamente assim que se compõe a biografia desse ente contraditório ao longo
de três décadas de militância. Os efeitos do ativismo judicial e sua forte
carga política, por outro lado, se fazem sentir na insegurança jurídica, na
expansão da impunidade e na incontida ruptura da ordem, provavelmente vista
como estratégia de ação política.
Certas
coisas acontecem como preço pago por nossa longa e silenciosa omissão. É
indispensável, nestes novos tempos, que a sociedade continue fazendo ouvir sua
voz.
Percival Puggina - membro da
Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular
do site www.puggina.org,
colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o
totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do
Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
(1)
“A inutilidade da audiência de
custódia”, por Marcelo Rocha Monteiro, no YouTube.
(2)
Gauchazh, 13 de julho de 2019
(3) Nota sobre as denúncias do Intercep, no
portal da AJD
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