Na semana passada, novamente, o mundo tremeu com a
divulgação de mais uma dessas pesquisas científicas inesperadas. O pesquisador
chinês He Jiankui anunciou que havia utilizado a técnica de CRISPR-Cas9 para
modificar o material genético de embriões, com a intenção de criar uma mutação
que os protegesse da infecção pelo vírus HIV e, consequentemente, da AIDS.
Segundo He, duas crianças gêmeas (com pseudônimos Nana e Lulu) já teriam
nascido fruto deste procedimento e testes genéticos nessas crianças teriam
demonstrado que tais modificações genéticas realmente ocorreram. A comunidade científica
“entrou em parafuso”, por vários motivos:
1) Há na comunidade científica internacional um
consenso de que a modificação de material genético de embriões a serem
implantados não poderia ser realizada sem que houvesse avanços nos quesitos de
segurança e eficácia - e apenas se e quando houvesse um amplo consenso da
Sociedade de que tal tecnologia poderia ser usada de forma adequada.
2) A técnica de CRISPR-Cas9, um dos avanços mais
promissores da Ciência no sentido de curar doenças genéticas, ainda carece de
maior desenvolvimento técnico para passar da etapa de investigação científica
para aplicação clínica. O maior desafio científico atual é desenvolver
metodologias para que a técnica de CRISP-Cas9 não possa modificar o Genoma
humano em locais não intencionais e não programados e de forma não detectável,
o que traria consequências imprevisíveis para os pacientes, seus descendentes
e, em um aspecto mais amplo, para toda a espécie humana;
3) Há fortes indícios de que nem os sete casais
participantes da própria pesquisa foram corretamente informados em detalhe dos
meios que seriam utilizados por He para atingir seu objetivo;
4) Como se tudo isso já não fosse suficientemente
assustador, o objetivo final de He (evitar que filhos de pais com HIV se
infectassem) poderia ser atingido com outras alternativas já disponíveis na
Medicina, mais seguras, eficazes e éticas do que o método utilizado.
Existem cerca de oito mil doenças genéticas sem
cura. Como corrigir um erro genético presente em cada uma das 37 trilhões de
células do nosso corpo? Há pelo menos meio século, os cientistas se debruçam
sobre pesquisas que um dia levem a um método seguro, eficaz e eticamente
aceitável para transpor esta enorme barreira científica. Já não bastassem os
enormes obstáculos científicos, de tempo em tempo um ou outro pesquisador se
aproveita dessas barreiras para ficar mundialmente famoso, insinuando que a
transpôs, mesmo sem levar em conta um ou mais dos três princípios básicos e
intransponíveis de toda pesquisa científica séria: segurança, eficácia e ética.
A inaceitável falha ética de He Jiankui trará
efeitos perversos não somente para a sua carreira, mas para a universidade na
qual realizou a pesquisa - e também para a própria pesquisa chinesa. Certamente
haverá um dano para os avanços das pesquisas com a promissora técnica de
CRISPR-Cas9 - e até para os pacientes HIV positivo que foram estigmatizados com
este experimento. Neste triste episódio da pesquisa inadvertida de He Jiankui,
todos perderam. Mas a perda maior foi daqueles que contam os dias para que
surjam curas para as doenças genéticas.
Salmo
Raskin - médico geneticista, diretor do Centro de Aconselhamento e Laboratório
Genetika e professor e pesquisador da Universidade Positivo.
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