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sexta-feira, 29 de junho de 2018

Legalização do aborto no Brasil, o Judiciário e a saúde da mulher


Um dos temas mais polêmicos no Brasil deverá render um novo capítulo a partir de agosto. A discussão sobre o aborto será retomada em audiências públicas marcadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A etapa foi convocada pela ministra Rosa Weber, relatora de uma ação proposta pelo PSOL para que o aborto até o terceiro mês de gestação deixe de ser considerado crime, pois a proibição viola direitos fundamentais.

Um dos pontos de pressão para este novo debate também está na aprovação da vizinha Argentina do projeto de lei que descriminaliza o aborto no país. Por lá, a nova lei permitirá a realização do procedimento até a 14.ª semana de gestação em qualquer caso e ainda estabelece que, se a gestante for menor de 16 anos, ele deverá ser feito com o consentimento dela. Na Argentina, o aborto era proibido por uma lei de 1921 e punido com pena de prisão. Na América Latina, o aborto sem restrições é legal no Uruguai e em Cuba. Também é permitido na Cidade do México. Em quase todos os demais países do continente é permitido apenas no caso de risco para a mulher, quando não há chance de sobrevivência do feto ou se a gravidez for resultado de um estupro. Em El Salvador, Honduras e Nicarágua é proibido completamente.

Importa lembrar que, pela legislação brasileira, o aborto só é permitido em caso de estupro, de feto anencéfalo e em casos em que a vida da mãe está em risco. Sem dúvida, foram conquistados alguns avanços relativos à questão do aborto no país, mas a sociedade encontra-se, política e socialmente, despreparada para discutir o tema.

A definição do momento em que se inicia a vida é essencial para quem defende e para quem é o contrário aborto. Afinal, a vida começa na concepção?

Fato é que o Código Civil, em seu artigo 2° põe a salvo os direitos do nascituro, embora o artigo refira mais direitos à pessoa que com a vida adquire personalidade civil. Já a Constituição Federal, no artigo 5°, dispõe acerca da proteção à vida sem fazer qualquer referência à concepção, o que sugere a não adoção pelo texto constitucional da teoria que põe a salvo a vida naquele instante. Essa é uma das teorias.

Para parte dos ministros do STF são inconstitucionais os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto, conforme decisão de 2016. O entendimento valeu apenas para um caso específico. Justamente por isso que o PSOL ingressou com a ação sobre o mesmo tema, para que o entendimento tenha alcance geral.

O debate será caloroso, já que há lados bem definidos.  A chamada bancada religiosa do Legislativo tem uma grande força e faz um imenso lobby contra todos os avanços do tema, com justificativas em textos sagrados e na vontade de Deus – o que é compreensível. De outro lado, esses mesmos legisladores precisam olhar o tema a partir de dados. Descriminalizar o aborto não é incentivá-lo.

A controvérsia quanto ao aborto reside no fato de que o direito à vida não é absoluto. Para alguns, o Direito Constitucional (e natural) à vida do feto precisa ser respeitado. Para outra corrente, a mulher faz jus ao direito à dignidade humana, ao direito de escolha.

Outra ótica deve nortear a discussão no sentido de tratar o aborto como assunto de saúde pública. Globalmente, mais de 25 milhões de abortos inseguros (45% do total) ocorrem anualmente, segundo estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS). A maioria é realizada em países em desenvolvimento de África, Ásia e América Latina.

Esse estudo de 2017 mostrou que a restrição ou proibição do acesso não reduz o número de abortos. Ratificando esse dado, tem-se que, em países onde o aborto é completa ou parcialmente proibido, um em cada quatro abortos é seguro. Em países onde o aborto é legal, nove entre dez são realizados de maneira segura.

Quando os abortos são feitos de acordo com as diretrizes e padrões da OMS, o risco de complicações severas ou de morte é insignificante. Na ausência de condições seguras, os resultados podem incluir aborto incompleto, hemorragia, lesões vaginal, cervical e uterina, além de infecções, onerando os custos da saúde pública.

O Ministério da Saúde apresenta uma Norma Técnica sobre Atenção Humanizada ao Abortamento, cuja proposta é “fornecer aos profissionais subsídios para que possam oferecer não só cuidado imediato às mulheres em situação de abortamento, mas também, na perspectiva da integralidade deste atendimento, disponibilizar às mulheres alternativas contraceptivas, evitando o recurso a abortamentos repetidos”. Todavia, o que ainda se discute é o direito de a mulher optar pelo aborto, não somente nos casos já previstos em lei.

O procedimento abortivo em hospitais ou locais com segurança é feito apenas por quem tem dinheiro para pagar. O acesso a medicamentos abortivos de origem ilícita é pouco fiscalizado, existem sites que vendem explicitamente os produtos. Apenas uma fiscalização mais intensiva e com penalidades mais graves trarão alguma mudança no cenário atual.

Coaduno com a visão do ministro do STF, Luis Roberto Barroso, na qual a proibição do aborto deve ser relativizada pelo contexto social e pelas nuances de cada caso. Por exemplo, a interrupção da gravidez é realizada por muitas mulheres, mas apenas as mais pobres sofrem os efeitos dessa prática, pois se submetem a procedimentos duvidosos em locais sem a infraestrutura necessária. Esse ciclo coloca o Brasil como um dos países em que mais se morre pela prática do aborto clandestino, ainda que nem todos os abortos sejam contabilizados, pelo evidente receio da mulher em declarar a prática.

O Judiciário não pode carregar esse fardo constante de legislar, sobretudo em temas mais ásperos. Os três Poderes precisam enfrentar e discutir o tema aborto em conjunto com os profissionais da saúde e a sociedade organizada. É necessário que sejam estabelecidas regras cristalinas para que sejam reduzidos os casos de mortes e de lesões físicas e morais resultantes do aborto desassistido e clandestino. E que as discussões não se desviem do núcleo central da questão: o direito da mulher.








Sandra Franco - consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde, membro do Comitê de Ética da UNESP para pesquisa em seres humanos e Doutoranda em Saúde Pública – drasandra@sfranconsultoria.com.br



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